sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pruit Igoe and Prophecies


Na casa de meu pai há um quarto que já foi o meu. Nele, agora, ocupando o espaço que já foi meu, se acumulam livros que meu pai não sabe onde por. É uma espécie de troca justa: a primeira vez em que saí da casa de meus pais foi para me envolver mais a fundo com livros e estudos.

Na verdade, sempre vivi cercado de livros, cadernos, revistas. Quando adolescente, ansioso por ter o meu estilo, eu fazia as capas dos meus cadernos, com plástico autocolante e recortes de revistas que eu comprava em duplicata. Não me esqueço de que fui estudar, no interior do estado, com um caderno que tinha na capa um mapa de Marte, tirado de uma revista de astronomia da antiga Rio Gráfica Editora, que eu só encontrei depois de percorrer uma infinidade de bancas. 

Li muita coisa comprada em bancas de revistas. Quando fui morar no interior, o pouco dinheiro que sobrava da mesada de meu pai eu gastava em livros, revistas, especialmente graphic novels, e cinema. Acho que foi nessa época que eu vi Koyaanisqatsi, que é um dos filmes que mais me marcou (ele está lá no meu perfil), por não ter palavras.

Pois bem, tudo isso que eu contei até agora serviu de preâmbulo para o dia de hoje. Em meu antigo quarto, além dos livros, há uma TV com um aparelho de DVD, e neles eu assisti, hoje, um filme que estava em minha mochila há dias, "Watchmen", uma adaptação para o cinema de uma graphic novel que eu comprei em sei-lá-quantos suados fascículos.

A parte da história em quadrinhos que mais me emocionou (e que já apareceu neste blog, numa versão animada dos quadrinhos) é a do cientista que vira um semideus por acidente e vai para Marte, para se afastar de problemas pessoais. Eu sempre quis fazer isso, fugir para Marte, mas, hoje, o máximo que posso fazer é fugir para a casa do meu pai. E ao ver hoje o filme, que é fiel aos quadrinhos, reconheci de imediato a trilha sonora escolhida para essa sequência: é um trecho de Koyaanisqatsi...

Ou eu sou uma pessoa muito ordinária, de gosto muito mediano, ou o universo está de sacanagem comigo, sorrindo da minha cara de idiota.

(imagem: música, música, música...)

Sonata ao luar


Eu queria escrever pela última vez.

Eu queria escrever uma coisa - uma frase, um texto, um poema - que fosse tão relevante, tão cheia de significado, de modo que nada mais que viesse depois dela fizesse sentido.

Eu queria escrever o que eu sinto, mas o que sai, sempre, são essas porcarias de palavras que eu escrevo.

Eu queria não querer escrever.

Eu queria não querer.

E ainda assim eu quero, como se isso significasse algo. O ruim é que eu sei que querer não é poder: querer é sofrer. Eu quero, mais que tudo, com todas as células, moléculas e forças do meu corpo e da minha alma, uma de duas coisas: a utopia ou a morte. No fim, tudo que eu tenho é essa agonia, indescritível, que me queima sem queimar.

Não, não sei até onde eu vou: já escrevi demais.

(imagem: o vídeo é da Sonata ao Luar de Beethoven - eu queria ser capaz de escrever um texto que passasse essa emoção toda...)

O Sol também se levanta


Ao acordar, hoje, tive uma daquelas recordações que parecem surgir do nada, sem motivo aparente, sem conexão com a realidade. Me lembrei de um tempo, muito distante no passado, em que uma moça me perguntou se eu queria dormir com ela. Hoje, pela manhã, vi que dei a resposta errada: eu queria era acordar com ela.

Pena, agora já é tarde.

(imagem: o nascer do Sol)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dublinenses


Talvez eu já tenha contado essa história aqui, talvez não. Não custa repetir, e se houver inconsistências, bem, que se dane: eu estou ficando velho, e minha memória varia.

Eu acho que tinha uns nove ou dez anos, e voltava da padaria por uma viela de terra, carregando um saquinho de leite B e um pacote de pães. No chão, ao meu redor, nos pés dos muros, uma planta espinhosa com pequenas flores - acho que se chama "coroa de Cristo" ou algo parecido.

E, de repente, "bateu". Como uma onda, avassaladora, gigantesca, levando tudo embora. O mundo desapareceu, e fiquei eu, com uma visão. Foi como se num segundo eu tivesse entendido tudo, tudo mesmo, e não conseguisse acompanhar.

O que se apresentou diante de mim era o universo ou talvez a existência ou Deus - palavras que nem de longe descrevem o que eu vi, mas que são o melhor que eu tenho. E a sua essência era conhecimento. Conhecimento: o universo ou a existência ou Deus estavam encharcados de conhecimento, eram conhecimento, pronto para ser lido, compartilhado, reconstruído.

Eu tentei viver isso minha vida toda: viver é conhecer, é amar o conhecimento e os seres humanos. Estudei tudo que pude - línguas, ciências exatas, biologia - e tentei aproveitar o que aprendi para transformar minha existência e a dos outros ao meu alcance. No final, me tornei um professor universitário.

Pois bem, pulo agora uns trinta anos, até anteontem. Estou ainda sentindo o golpe de uma experiência sensorial no planetário, que me fez ver o quão pequeno eu sou. E aí uma colega, preparando aula, me apresenta Paulo Freire, explicado por Moacir Gadotti: "educar é encharcar de sentidos cada momento do cotidiano". Ouvir isso, para mim, foi como tomar um chute "naquele lugar", como se alguém tivesse colocado um cigarro acesso numa ferida minha.

Eu ainda não acredito: se isso já foi escrito, as pessoas todas deviam saber, isso deveria estar escrito em cada muro, em cada página, em cada palavra. E eu, ligado a instituições universitárias por mais de vinte anos, nunca tinha ouvido algo similar, dito por quem quer que seja. Onde eu estava?

Pois então, agora, aqui estou eu, abobalhado, perdido com essas "revelações" todas, uma atrás da outra. O timing tem sido perfeito: é como se eu estivesse passando por um processo de lavagem cerebral, como o que é feito por algumas seitas, com cada passo planejado com cuidado, para a minha desconstrução. Não, não creio em teorias da conspiração, mas acho que nesse caso o universo está conspirando, e eu não sei se é a meu favor ou contra mim.

Eu preciso ler mais o mundo, descobrir mais, escrever mais. Eu preciso me ler, me descobrir, me escrever: quem sabe algo se aproveita. Eu, agora, hoje, sinto que já não sei mais nada: acho que tiraram o chão de debaixo de meus pés, e eu estou caindo, caindo e caindo, quando preferia voar.

(imagem: James Joyce, um escritor interessado em epifanias, palavra sobre a qual diz a wikipedia: "The word's secular usage may owe some of its popularity to James Joyce, who expounded on its meaning in the fragment Stephen Hero and the novel A Portrait of the Artist as a Young Man (1916) (...) Joyce also used epiphany as a literary device within each short story of his collection Dubliners (1914).  [O uso secular da palavra [epifania] pode dever algo de sua popularidade a James Joyce, que escreveu sobre seu significado no fragmento Stephen Herói e no romance Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916) (...) Joyce também usou a epifania como uma ferramenta literária em cada conto de sua coletânea Dublinenses (1914)]" - deu para sacar de onde saiu o nome desta postagem e o meu nome?)

domingo, 25 de abril de 2010

O céu que nos protege


Ontem fui ao planetário de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, para participar de um "sábado astronômico", um conjunto de atividades envolvendo palestras, observações e exibições no planetário.

E, ontem, eu morri.

Houve uma palestra sobre a história da astronomia e a observação dos planetas em que quase tudo que era dito eu já conhecia, mas... A descrição do trabalho de Kepler, da descoberta das órbitas elípticas, me emocionou tanto que eu engasguei. Meus olhos marearam, meu cérebro "travou".

Aí, depois, quando as luzes do auditório principal do planetário se apagaram, eu já estava amaciado, pronto para ver e sentir as estrelas, cada uma delas, das milhares delas, em toda parte, acima, ao meu lado, dentro de mim, a suavidade de milhares de dedos luminosos tocando meus olhos, minha pele, minhas mãos...

Eu fiquei doente, senti náuseas, vertigem. Me senti pequeno, miserável, ridículo, embasbacado. Eu queria me esconder, me deitar, fugir, chorar, vomitar, flutuar, rir nervosamente, sonhar, não acordar...

Tenho mais de quarenta anos de idade, alguns diplomas, alguns empregos no currículo, família, filhos - e ontem, debaixo do céu falso de estrelas do planetário, me senti como se eu não tivesse feito nada, como se eu fosse nada, menos que um grão de pó, menor que a coisa mais insignificante que eu possa imaginar.

Não, não era para ser tão bonito. E é, absurda e dolorosamente, belo.

Não, ontem não aconteceu nada disso. Eu devo estar inventando tudo. Pois se aconteceu, e eu vi tanto e senti tanto, como vou conseguir viver o resto do meus dias? Ainda mais numa cidade como São Paulo, em que não há estrelas... Voltei para casa sem querer voltar, tarde da noite, a cabeça muito acima das nuvens, só para encontrar todos dormindo. Dormindo, enquanto eu me sentia mais desperto que nunca.

Pois é, ontem, eu morri, acordado por uma experiência profunda, que me virou do avesso, que tornou a vida que eu tinha antes impossível, e não sei para onde vou agora: depois de ontem, onde encontrarei a minha estrela guia?

(imagem: a constelação de Órion, vista nos céus da Alemanha - "todo mundo" conhece as Três Marias e a vermelha gigante Betelgeuse (por causa de um personagem de filmes e desenhos, Beetlejuice), mas o conjunto contêm ainda as estrelas Rigel, Saiph e Bellatrix (uma estrela "amazona"); meus sinceros parabéns ao pessoal do Clube de Astronomia de São Paulo, que promove as atividades do sábado astronômico)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Nunca te vi, sempre te amei

Lendo minha última postagem, a achei um tanto quanto ridícula. Não sou jovem, não entendo de poesia e não sei dar conselhos. Se era para ser ridículo, melhor seria escrever algo ridículo como uma carta de amor. E a última vez que fiz isso - escrever uma carta de amor - acho que eu tinha menos de vinte anos... A carta nunca foi entregue: eu a queimei.

É bem de manhã agora, e estou descabelado, vazio, amorfo, ridículo. O pior de tudo é que eu sei que mesmo depois de tomar banho, me barbear (vou fazer isso hoje?), arrumar os cabelos, eu vou continuar do mesmo jeito, intrinsecamente ridículo: o espelho me diz isso.

Este espaço virtual é isso, um espelho. E eu descobri que é só com a figura do espelho que eu posso interagir. Ou seja, é por isso que eu escrevo. Não há mais nada que eu possa fazer. O meu mundo se resume a mim e meu espelho, e ocasionais devaneios: acho que às vezes eu penso ter visto algo além de mim na imagem em minha frente, mas velho como estou, eu deveria saber mais.

Pois é, eu escrevo aqui minhas reflexões. Um amigo achou que elas estavam românticas. Então, em homenagem a ele, vou ser romântico mesmo e vou escrever uma carta de amor hoje, mesmo não sabendo como começar. É claro que eu posso até ser capaz de sentir algo, mas meus sentimentos só interessam a mim: para quem eu escreveria? Mas pensando que talvez seja um exercício interessante, vou escrever uma carta genérica, endereçada a ninguém... Vamos lá, então:
Cara desconhecida,

Não sei porque lhe escrevo. Eu queria dizer muita coisa,  mas... Mas o quê? Não quero falar das coisas que vi em você, sua beleza, sua inteligência, seu charme, pois na verdade não te conheço. Tudo que eu conheço é o que eu pensei a seu respeito, e isso tem me deixado num estado de graça e, ao mesmo tempo, de desgraça: quando te vejo, quando te penso, com os olhos do pensamento, eu tenho uma epifania, um desvario, uma revelação, e eu sei que isso não pode ser real - não pode haver mulher no mundo que seja como eu te vejo, pois se houver todos os homens deveriam cair a seus pés como insetos ao redor da luz.

Desconhecida, você não existe, não pode existir, e ainda assim, você me destrói, por eu ter sido capaz de te imaginar. Eu sei que só existo eu, apaixonado, impossivelmente apaixonado pelo impossível - e isso é ridículo, tão ridículo como uma carta fictícia, escrita num mundo virtual, para ninguém. Mas o que eu sinto, o que eu tenho em mim, é algo tão imenso que não cabe em mim, e escorre pela minha pele, com meu suor, transborda pelas pontas de meus dedos. Eu preciso escrever que te amo, desconhecida, mesmo que você nunca vá ouvir.

O que eu sinto é amor? Não, é mais: é amor, desejo, é agonia - em mim há uma tempestade, cheia de fúria e ímpeto, sons e luzes, revolvendo o meu espírito. Eu não estou exagerando, mas só eu sei que não: só eu sei o que eu sinto. E eu nunca senti isso antes, e eu nunca disse ou escrevi nada disso a mulher nenhuma: nunca conheci, nem nunca conhecerei, uma outra mulher como você - afinal, você não existe.

É isso. Se cabe um resumo, ele é simplesmente "eu te amo", mas isso não basta, nunca bastou, nunca bastará. O que há em mim não cabe em poucas palavras, nem em muitas, nem em nenhuma. Caberia, talvez, em gerações de outros homens apaixonados, que virão depois de mim, mas pensando bem, todos os sonhos e sentimentos deles somados nunca farão uma pequena porção do que eu sinto...

Eternamente teu,

Eu.
(imagem: hoje também não tem)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Cartas a um jovem poeta

Olhando para a quantidade de postagens que fiz nos últimos dias, fico com a impressão de que nunca tive tanta vontade - tanta necessidade - de escrever como agora. É como se eu estivesse me afogando e no desespero, na agonia de querer viver, começasse a me debater, rapidamente, sem parar. Pena, mas acho que isso nunca salvou ninguém de morrer afogado...

E lendo o que escrevi, do que tenho falado? Não sei, não sei mesmo, mas dizem os cristãos que a boca do homem fala daquilo de que seu coração está cheio. O meu coração certamente está cheio, e se eu o abrisse de verdade acho que inundaria a Terra e os céus.

Mas de nada adianta ter um coração cheio: ele pode estar cheio de maravilhas, mas também de porcarias ou cheio de nada, até mesmo cheio de ar quente. O meu coração, se arrancado, medido e pesado, hoje, acho que não valeria um tostão. Não importa o que há dentro dele, não importa o que há dentro de mim, nada parece importar. Nada.

Nos evangelhos da Bíblia cristã há o seguinte texto:
"E, de manha, voltando para a cidade, teve fome. E, avistando uma figueira perto do caminho, dirigiu-se a ela e não achou nela senão folhas. E disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti. E a figueira secou - se imediatamente."
Pois bem, fiquei com a incumbência de cuidar das plantas de uma amiga que viajou. Tudo ia bem até a semana passada, mas eu fiquei alguns poucos dias quentes sem ir lá e, bingo!, boa parte das plantas secou. Erro meu: quem devia ter secado era eu, que não tenho frutos, só folhas vazias, cheias de palavras inúteis.

As palavras são inúteis, e as minhas, são muitas. Não deviam ser. Eu não devia ser.

Desabafo feito, acho que eu devia ir dormir. Infelizmente, amanhã tenho que estar de pé de novo, para provavelmente enfrentar, de novo, essa ânsia de escrever até os dedos sangrarem...

(imagem: hoje não tem; o título desta postagem é de Rilke, que escreveu: "Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda." A minha eu já tenho.)

Inferno


Eu escrevi recentemente que parece que Dante estava me perseguindo, e aí, no jornal de hoje, encontro quem? Uma página inteira de Laerte satirizando a "Divina Comédia" (mais precisamente o inferno).

Pouca gente sabe, mas o centro do inferno, em Dante, não é quente, muito pelo contrário:
"Neste lugar sombrio e gelado, as almas estavam completamente submersas no gelo, transparecendo como palha em cristal. Algumas estavam de pé, outras de ponta-cabeça, outras atravessadas, outras em arco, outras curvadas e outras invertidas."
De onde vem o gelo? Do vento criado pelo bater das asas de Lúcifer.

Foi na semana passada que eu revi uma outra idéia do inferno bem interessante, em um episódio de Lost. O personagem Richard Alpert, prisioneiro em um navio que naufraga numa tempestade, sobrevive ao naufrágio, mas fica preso no porão do navio, sem água ou comida, vendo o céu por uma portinhola no teto. Um dia, com ele exausto de fome e sede, chove e a água cai pela portinhola. Ele tenta alcançá-la, mas a corrente que o prende é curta demais, e ele fica sem poder se saciar, por um nada... É o mesmo castigo que foi dado a Tântalo, um rei que foi aprisionado no Tártaro, "local onde o crime encontra seu castigo".

Acho que isso dá uma boa visão do inferno: as coisas de que precisamos e que desejamos estão lá, à nossa vista, quase ao nosso alcance, mas só quase, sempre quase, eternamente quase, eternamente nos atormentando. Eu não queria estar num lugar desses, não mesmo, mas os meus pecados - ah! meus pecados! - acho que não me dão outras opções.

(imagem: Sísifo, outro cara condenado a um castigo eterno, bem mais famoso que Tântalo)

domingo, 18 de abril de 2010

A matemática como estruturante do pensamento físico


Lendo artigos de pesquisa em ensino de ciências, buscando textos que falassem sobre o papel da matemática na física, encontrei o seguinte trecho:
"As palavras são idéias codificadas e são a matéria prima do nosso pensamento. Integrando palavras em frases, expressamos idéias e pensamentos. A linguagem humana é o testemunho da maneira como nosso pensamento lida com as idéias, articulando-as umas às outras na construção de significados. Nem sempre existe uma correlação direta entre os significados presentes no mundo das idéias com aqueles do mundo real. Neste caso, estamos no domínio exclusivo da imaginação. Imaginação ou realidade, a linguagem deve ser entendida como a forma que temos de estruturar nosso pensamento."
Não sei nada de teorias de cognição, mas acho interessante a idéia de que as palavras nos ajudam a organizar o nosso pensamento. O problema é que também existem coisas no mundo - seja no mundo das idéias ou no mundo real - para as quais não existem palavras, ou para as quais as palavras podem fornecer apenas uma aproximação grosseira. Imagine uma bela música instrumental: como se descreve com palavras o conteúdo dela? Imagine a gravidade, descrita pela teoria da relatividade: explicar a curvatura do espaço-tempo só com palavras é explicá-la de forma incompleta.

Este blog é isso também, uma dança longa ao redor de algo que eu não sei explicar com palavras, mas que tento definir com elas, mesmo sabendo que não vou conseguir: eu vi (e vejo ainda, às vezes), com meu pensamento, imagens cuja estrutura não é facilmente reproduzida pela linguagem cotidiana, e que gostaria de compartilhar. E é duro saber que, por mais que eu tente, vou falhar nisso, mas tenho de reconhecer: é a vida.

O universo é cruel por ser assim? Não. O universo é, apenas. Cruéis podemos ser nós, rejeitando as maravilhas que ele frequentemente nos oferece por elas não se enquadrarem nas estruturas com que estamos acostumados: só temos a perder agindo assim.

(imagem: é uma onda, uma partícula ou outra coisa?; o título desta postagem vem do artigo de onde tirei a citação principal do texto)

sábado, 17 de abril de 2010

Planetas solitários


Li hoje, no jornal que eu assino, que, baseado num estudo sobre estrelas do tipo anã branca, pode-se concluir que planetas rochosos - do tipo da Terra e seus vizinhos mais próximos - devem existir em grande quantidade: a manchete era "Planetas rochosos são bilhões, diz estudo" (uma outra versão da mesma notícia pode ser encontrada na internet).

Uma estimativa do número de planetas é bastante importante para que se possa avaliar o quão comum é a vida no universo. Será que só existe vida na Terra, porque a Terra é um tipo raro de planeta? Essa, é claro, não é a única pergunta que se pode fazer - será que, mesmo a Terra não sendo uma espécie exótica de planeta,  a vida seja rara e tenha aparecido aqui apenas por acaso, por uma série quase improvável de coincidências? - mas é uma pergunta importante.

Eu, atualmente, estou organizando material para um curso que começará em maio próximo, e por conta disso estou lendo alguns textos de astronomia. Eu tenho que terminar de preparar um textinho sobre astrobiologia, e acordei pensando nisso, hoje. Qual seria a probabilidade de eu encontrar no jornal de hoje, que quase não fala de ciência, uma matéria sobre o assunto?

A mais famosa equação da astrobiologia - "novo nome para uma antiga busca": "o que anteriormente era chamado de exobiologia, bioastronomia, cosmobiologia, xenobiologia ou exobotânica" - conhecida como equação de Drake, é apresentada, no livro "Planetas solitários", de David Grinspoon (de onde saíram as citações anteriores), com uma analogia: "a equação do encontro amoroso".
"Digamos que você é uma pessoa solteira que está indo para um grande baile e gostaria de sair de lá com um encontro amoroso para o final de semana seguinte. (...) Antes de entrar, tenta calcular as chances de ter sorte. Começa tentando adivinhar o número total de pessoas na festa."
Acho que já deu para passar a idéia: hoje nós, cientistas, estamos tentando adivinhar quantas pessoas pode haver na festa. Não é uma tarefa fácil. O primeiro obstáculo a superar é o da nossa ignorância intrínseca, mas esse não é o único: e se a vida no universo depender de coincidências?

Imagine o seguinte: quais são as chances de encontrar um amor na sua vida? Provavelmente não muito baixas, já que homens e mulheres buscam companhia. Mas quais são as chances de encontrar alguém que realmente seja afinado com você, que lhe complete de verdade? Nesse caso, a probabilidade é menor, mas se você procurar bastante pode facilitar as coisas. Imagine, porém, que você deve, idealmente, achar essa pessoa antes de você ou ela estarem já comprometidos, que vocês devem se aproximar um do outro, que devem reconhecer um no outro as afinidades... Você consegue estimar o número de encontros necessários para que isso ocorra com certeza?

Vou piorar a situação: pense que, contra todas as probabilidades, você encontrou a pessoa que parece certa, mas não sabe como convencê-la disso. De repente, pensando nesse seu dilema, você encontra no chão um pedaço de papel que fala desse seu problema - uma antiga figurinha, por exemplo, da série "Amar é...", lançada, se não me engano, na década de 80: qual é a chance disso acontecer? Pura coincidência? (Achei uma figurinha dessas essa semana, saída sei lá de onde, e não sabia o que fazer com ela. Se eu estivesse apaixonado, ia achar um sinal dos deuses, um milagre, um assombro...)

Quando se estuda a vida e suas origens, o problema está justamente aí, em distinguir o que é coincidência do que não é. As condições para o aparecimento da vida na Terra existem aqui por coincidência, como uma figurinha difícil ou um bilhete de loteria que por mero acaso vieram ter aos pés de alguém que sabia o que eles eram, ou a vida acontece sempre, como uma necessidade da natureza?  

A ciência ainda não tem essa resposta. Não sabemos se estamos sós no universo. Nosso planeta, por enquanto, parece ser o único lugar com vida num imenso - põe imenso nisso - deserto. Mas essa visão pode estar muito equivocada, pois só agora estamos tendo consciência das nossas limitações. Não fomos ainda a quase nenhum lugar: precisamos explorar mais.

A astrobiologia é isso: uma exploração especulativa das possibilidades que a ciência nos mostra. Uma exploração talvez até mesmo quase anti-científica, romântica: "exploramos o espaço por motivos românticos e idealistas" é uma frase que aparece na contracapa do meu livro. Eu, romântico e idealista, só espero que isso seja verdade, e eu não seja o único romântico e idealista vagando por aí...

(imagem: uma velha música dizia que "A gente tenta esquecer que todo mundo é uma ilha", mas ilha mesmo é o nosso planeta, "a milhas e milhas e milhas de qualquer lugar, nessa terra de gigantes")

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A arte de amar a ciência


Ah! A ciência e seus frutos... É fantástico ver os resultados da atividade científica, quando eles já estão prontos de verdade: é um pouco como ver uma jóia, feita de ouro e brilhantes. No entanto, antes disso, antes da "verdade" se revelar, alguém tem de fazer o trabalho de garimpagem...

Tudo começa, às vezes, no meio de mais um dia comum, quando seus olhos, como numa visão, encontram uma idéia que parece perfeita para você, lhe prometendo o mundo e mais um pouco, ou o seu pequeno punhado de glória. Aí, já maravilhado, você vai atrás dela, para confirmar se o que você sentiu é real ou só uma ilusão atraente. É um jogo de sedução, uma dança que pode ser longa e levar quem entra nela numa montanha-russa de emoções.

Acho que foi quase ontem, ou uns poucos dias atrás, que eu tive um instante assim, em que eu achei que tinha visto algo tão poderoso que quase não pude acreditar: era como se eu tivesse encontrado a pedra filosofal, ou o Santo Graal. Fiquei num estado de euforia, apaixonado. E como todo apaixonado perdi o sono e a fome acariciando minha idéia: "e se eu fizer isso?", "e se eu fizer aquilo?", "será que..." Em reuniões administrativas, em colegiados, em conselhos, eu não conseguia me concentrar em nada mais, nem mesmo na preparação de aulas.

Mil passos de dança depois, ainda não sei se achei alguma coisa ou se fui me meter em apenas mais um beco sem saída, e eu não sei como continuar. Hoje, pouco depois do almoço, fiquei profundamente deprimido, me sentindo talvez o maior imbecil da Terra, frustrado como se eu tivesse sido rejeitado. No fim do dia, quando eu já estava saindo de minha sala, pronto para me esconder no ponto mais profundo do planeta, para talvez nunca mais sair de lá, fui surpreendido por uma nova, ainda que breve e fugaz, lufada de esperança, que me fez ficar por mais algum tempo em frente ao computador.

Por que eu me meti nesse negócio? Seria muitíssimo mais simples deitar sobre o que eu já aprendi e dar aulas até a aposentadoria. Mas eu sei que não sou uma criatura puramente racional, e que a ciência, a bela ciência, aquela que é mais que burocracia e geração de estatísticas, não é feita de modo racional: ela é como uma declaração de amor, e é algo que eu ainda não vejo direito como fazer...

(imagem: pintura de Jan Vermeer, intitulada "A carta de amor", cujo simbolismo é interessante; o título desta postagem vem de um livro de Pascal Nouvel, descrito como "uma análise sobre as motivações e caminhos que conduzem os cientistas às suas descobertas, percurso ambivalente, entre a lógica do método científico e as razões subjetivas, psicológicas e pessoais, que levam tais pessoas a se dedicar à ciência")

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Ando meio desligado

Nos dez minutos que gasto para vir para o trabalho (é: eu moro perto do meu trabalho) eu ouvi, hoje pela manhã, no rádio do carro, uma musiquinha de que gosto muito, e que fazia tempo que eu não escutava. E, com o sol dessa manhã, acho que viajei...


Update: o nome do disco que originalmente continha essa música é "A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado" - só agora me dei conta de que Dante parece estar me assombrando...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Dom Quixote


Enquanto escrevo isso, o relógio do computador me mostra que são duas da manhã. Eu deveria estar dormindo, mas acordei incomodado pela promessa que fiz a uma leitora anônima (que pode, muito bem, ser um leitor: nunca se sabe quem está por trás de um nome na internet) de contar uma história de amor.

Pois bem, a história aconteceu com um amigo meu, não comigo. Na verdade, foi com um amigo de um amigo, mas isso não vem ao caso. Esse rapaz, que vou chamar de René, era solitário e triste, pois, embora fosse romântico, era feio, pequeno e magro, ou seja, nenhuma moça o levava a sério. Isso até o deixava com uma péssima opinião sobre o sexo frágil, tal como aparece numa música dos anos 60, dos Doors: "women seem wicked when you're unwanted [as mulheres parecem más quando você não é desejado]".

Até que um dia, andando no fabuloso mundo cultural da região da Avenida Paulista, René conheceu Dulciana, que morava por lá. Dulciana não era bela como a Dulcinéia de Dom Quixote de La Mancha, mas pareceu gostar de René. E ela era muito sofisticada, diferente de qualquer mulher que René, morador de periferia, tivesse conhecido até então. Conversas e passeios acabaram por levar René ao apartamento de Dulciana, onde ele, já enternecidamente apaixonado, foi morar.

Contudo, embora morasse com Dulciana, René nunca era apresentado aos amigos dela como nada além de um amigo com quem ela dividia o apartamento (acho que o termo, em inglês, é "roommate"). Em público, ela proibia qualquer demonstração de intimidade entre eles. E isso magoava René demais. Foi assim que ele decidiu passar tudo a limpo, lendo, às escondidas, o diário dela. Foi seu primeiro grande erro.

O que ele leu no diário deixou-o morto. Ou pelo menos foi isso que ele pensou. E aí ele cometeu seu segundo grande erro, que foi contar a ela que havia lido o diário. Veio uma briga, e ela, para demonstrar toda sua indignação, dormiu, na mesma noite, na sala do apartamento, com um amigo comum dos dois (para quem René era apenas um amigo de Dulciana).

Aí René morreu mesmo. Ele não dormiu naquela noite, sentindo seu coração ser arrancado do peito sem anestesia. Assim que a manhã nasceu, ele pegou suas coisas, enfiou o rabo entre as pernas e voltou para a periferia de onde tinha saído, para nunca mais voltar a andar na região da Paulista (o que não deu certo, já que ele foi trabalhar lá, e via Dulciana com frequência).

René não morreu de verdade, mas, como numa música dos Beatles, "he fell back in his room / Only to find Gideon's bible / Gideon checked out and he left it no doubt / To help with good Rocky's revival" (ah! essa eu não traduzo não!). Isto é, René achou sua ressurreição numa mistura que envolvia religião: ele nunca mais se apaixonou, mas virou evangélico e, na igreja de periferia em que se batizou, conheceu uma moça com quem casou e teve filhos e todo esse blá-blá-blá. Dulciana, até onde sei, dizem que "virou" lésbica, mas isso deve ser intriga da oposição.

Minha cara leitora anônima (ou leitor disfarçado), não sei se essa é uma história de amor que vá lhe agradar, mas me lembrei dela outro dia mesmo, andando pela Paulista. A moral que essa história (ou eu deveria escrever estória?) tem é que a vida é perigosa, e se apaixonar é correr um risco grande, enorme mesmo: você deixa de ser dono de seu coração e o põe na mão de outra pessoa que pode simplesmente achá-lo um lixo, ou um brinquedo. Mas viver é aprender a investir o que você tem  (me desculpe pela analogia, é que o banco me mandou um caderninho hoje mesmo, mostrando quando renderam as ações e a poupança e os fundos, etc.): o investimento de retorno seguro rende pouco, enquanto que o que pode render muito é bastante arriscado.

Dito isso, acho que posso voltar a dormir. Minha consciência me cobra que eu escreva algo mais animador, mas não sei se posso. O que eu posso dizer além do que já está aí é: viva! Eu, pessoalmente, quero viver, e me lembro muito bem que escrevi, quando me interessava por filosofia (eu tinha muito tempo livre...), que viver é amar. Ame e se deixe amar, mesmo correndo todos os riscos do mundo. Eu, mesmo conhecendo a história do René, acho que ele não faria muito diferente do que fez se soubesse mais (provavelmente, ele não contaria que leu o diário...): ele, como todo mundo, queria ser amado.

Sonhe com os anjos, que eu vou tentar o mesmo...

(imagem: Dulcinéia, é claro)

domingo, 11 de abril de 2010

Lettres sur les aveugles a l’usage de ceux qui voient


Um muito bom amigo, que é leitor deste blog, me disse, em particular, que o blog está "romântico". Corri para reler o que eu tinha escrito e não encontrei nada. Bem que eu gostaria de poder ser bastante romântico e escrever, entre ilustrações de flores e um fundo cor-de-rosa, algo do tipo
"Querido diário, ontem, apesar do frio, tive um dia ma-ra-vi-lho-so!"
mas não posso escrever nada assim, mesmo que descreva o que eu sinto.

Eu, em geral, não sou romântico. Todas as vezes em que tentei sê-lo, quebrei a cara, feio mesmo. Feio, pequeno e magrinho, eu não tenho o tipo físico, o "physique du rôle", para isso, e quando alguém me vê nessa linha já trata logo de mostrar o ridículo. Além do mais, eu sou um homem de ciência, primariamente. E homens de ciência devem ser sérios, no máximo poéticos, mas nunca românticos.

Entretanto, eu às vezes gostaria de me deixar levar pelo coração e escrever algo como ridículas cartas de amor ("Todas as cartas de amor são / Ridículas", não é mesmo?), como a que vai abaixo, escrita pelo francês Denis Diderot, e que pego emprestado de um blog que acompanho:
"10 de junho de 1759, Denis Diderot à Sophie Volland

Escrevo sem ver. Vim. Queria beijar tua mão e ir-me embora. Voltarei sem essa recompensa. Mas já não serei bastante recompensado, se tiver te mostrado o quanto te amo? São nove horas. Escrevo-te que te amo, quero ao menos escrevê-lo; mas não sei se a pena se presta a meu desejo. Será que não virás para que eu te diga e depois fuja? Adeus minha Sophie, boa noite. Teu coração então não está te dizendo que estou aqui. Essa é a primeira vez que escrevo nas trevas. Essa situação deveria me inspirar muitas coisas ternas. Sinto apenas uma, é que me é impossível sair daqui. A esperança de te ver um instante me detém, e continuo te falando, sem saber se estou formando caracteres. Em todo lugar onde nada houver, lê que te amo."
Eu queria mesmo ser capaz de escrever no escuro, iluminado apenas pelo meu amor, mas não posso: falta-me algo...

(imagem: Diderot, cara que, segundo a wikipedia, teria escrito "Não se retém quase nada sem o auxílio das palavras, e as palavras quase nunca bastam para transmitir precisamente o que se sente" e "Falando rigorosamente, só há um dever: o de sermos felizes"; o título desta postagem, "Cartas sobre os cegos para o uso daqueles que vêem", é tirado de um texto de Diderot - e o cego, bem, acho que sou eu)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

An Enquiry Into the Duties of Men in the Higher and Middle Classes of Society in Great Britain


Trecho de entrevista no jornal Valor Econômico:
"Valor: A classe média também pode gerar instabilidade, ao sentir que perde privilégios?

Alencastro: Isso já está acontecendo. É o que alimenta a agressividade anti-Lula de certos jornais e revistas, que retratam a perplexidade de uma camada social insegura: os pobres estão satisfeitos e os ricaços também, mas a velha classe média não acha graça nenhuma. Ter doméstica com direito trabalhista, pobres e remediados comprando carro e atrapalhando o trânsito, não ter faculdade pública garantida para os filhos matriculados em escola particular. Tudo isso é resultado da mobilidade social, que provoca incompreensão e ressentimento numa parte da classe média. Daí o furor contra o ProUni, as cotas na universidade, o Bolsa Família. Leio a imprensa brasileira pela internet e às vezes fico pasmo com os comentários dos leitores, a agressividade e o preconceito social explícitos. O discurso de gente como o senador Demóstenes Torres no DEM [contra o sistema de cotas raciais nas universidades públicas] indica uma guinada à direita da direita parecida com a dos republicanos nos Estados Unidos. Lá, esse extremismo empolgou o partido inteiro e pode desestabilizar o país. A falta de perspectiva da oposição cria um vácuo para o radicalismo."
(imagem: Thomas Gisborne, autor do livro que dá título a esta postagem, e sua esposa)

No estranho planeta dos seres audiovisuais

Nem tudo pode ser dito com palavras: eis o meu mote, que eu já escrevi aqui várias vezes, de várias formas. Na verdade, eu acho que o essencial está fora das palavras, quando muito entre elas, mas nunca apenas nelas. E este blog é isso mesmo: uma tentativa tosca de descrever algo que não pode ser descrito...

Enfim, cabe bem nessa discussão a discussão que é feita num inteligente programa de TV que está escondido no Canal Futura: "No estranho planeta dos seres audiovisuais". Cada capítulo dessa série tem mais conteúdo do que meses da TV pública brasileira. Pena que não esteja tudo disponível no YouTube.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Like a film, like a child


Houve um tempo em que a internet não existia. Também não havia DVDs ou TV paga. Música, eu ouvia em LPs ou fitas cassete. Eu era então jovem, talvez muito jovem e, é claro, vivia com os sentimentos e esperanças na superfície (e eu devia ser profundo como uma poça), pronto para me apaixonar por alguém ou algo.

Foi assim que encontrei, vinte anos ou mais no passado, numa sessão de cinema "maldita", que acontecia uma vez por semana numa sala do principal cinema de Araraquara, "Asas do desejo", de Wim Wenders. Fui rever o filme duas noites atrás, também numa sala escura, e - Deus! - tive que me segurar para não chorar...

O filme é lindo, com velocidade e fotografia que me fizeram lembrar muitas das razões que tenho para não ir ao cinema mais, hoje, mas dizer isso é óbvio. A história em si não é fantástica, mas há uma combinação, com diálogos, trilha sonora, e delicadeza que me puseram num estado de estupor que eu acho que não sentia desde...

Foi como se eu visse as coisas normalmente em preto e branco e, de repente, passasse a ver cores, de relance, como se eu estivesse perdido no mundo, observando tudo de longe, sem emoções, e, de repente, eu passasse a sentir. Foi como se eu voltasse a ter menos de vinte anos de novo. Foi... estranho, muito estranho, doce e amargo ao mesmo tempo, como se o filme tivesse a capacidade de me tocar como um violinista experiente toca o seu instrumento, arrancando dele notas que o violino não sabia que continha, como se o vento soprando numa poça fizesse a poça sentir frio.

E não foi só o filme, eu sei. Havia - há - algo mais, uma presença com a qual ainda não me acostumei, em tons que se confundiam, naquele instante, com a escuridão da sala de projeção, e paradoxalmente com uma luz tão cegante que se eu não tivesse me concentrado eu não teria conseguido assistir o filme... Não, não tenho, nem posso ter palavras para descrever isso, esse encantamento que me circunda, e que relembra muito o que me circundava mais claramente lá na minha juventude, mas é assim mesmo - palavras nunca dizem o essencial, pois o que é essencial não cabe nelas: em "Asas do desejo" o diretor parecia saber disso, e eu só fui lembrado disso pelo filme.

Voltei para casa, na noite fria, com a nítida sensação que tenho um anjo, que me atormenta. Antes de dormir, já debaixo das cobertas, sem conseguir pegar no sono, eu tive de escrever, e, infelizmente, não consegui escrever nem um décimo do que eu queria - usando meu celular, eu mal consegui por nele uma frase de um dos personagens: "Ich habe eine Geschichte"... Pena que eu não possa gritar isso por aí, aos quatro ventos.

(imagem: "Als das Kind Kind war, ging es mit hängenden Armen, wollte der Bach sei ein Fluß, der Fluß sei ein Strom, und diese Pfütze das Meer. [Quando a criança era uma criança, andava com os braços balançando, queria que o riacho fosse um rio, o rio fosse uma torrente, e esta poça o mar.]"; o título desta postagem vem de um artigo que encontrei numa revista dinamarquesa com um número inteiramente dedicado à discussão do filme...)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Leviatã


Comentário que postei num blog que frequento:
"Quando eu era criança, me apresentaram a Papai Noel. Segundo ele, existiria algo chamado “luta de classes”, que seria algo mais ou menos assim: a classe que está no poder hoje não iria querer largar o osso, e portanto iria fazer de tudo para impedir quem está por baixo de subir.

Pois bem, eu cresci e descobri que a imprensa - ou algo mais vago chamado mídia - é feita com dinheiro (imprimir e distribuir um jornal por um país do tamanho do Brasil, por exemplo, custa muito e, é claro, é mais fácil atrair anunciantes endinheirados se afinando ideologicamente com eles), e como o dinheiro, em geral, está ligado ao poder, a imprensa também está ligada ao poder (pelo menos aqui). Assim, eu aprendi também que imprensa imparcial é outra estória para crianças, mas que é divulgada aos quatro cantos como verdade."
(imagem: Thomas Hobbes, filósofo inglês que, segundo a wikipedia, nasceu em 5 de abril de 1588; na época dele Papai Noel não havia sido inventado ainda - parece, que segundo Hobbes, "monarchy is the best", e eu acho que tem muita gente hoje que pensa o mesmo, suspirando pelo retorno dos tempos em que a nobreza era respeitada e a ralé - que hoje faz greves! - ficava quieta)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Paraíso


Eu, certa época, fui trabalhar no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (o IAG), quando ele ficava fora da Cidade Universitária, mais especificamente em frente ao Jardim Zoológico. A área lá, dentro do Parque do Estado, era muito bonita e verde, mas o prédio da biblioteca continha uma atração à parte: um lindo vitral com a musa da astronomia, Urânia.

Sentimental e inclinado às letras que sou, já tive minhas musas, mas nenhuma delas me marcou como Beatriz marcou Dante - é ela que vai recepcioná-lo na entrada do paraíso:
"Com o olhar fixo, Beatriz encarava o Sol sem piscar, como águia alguma jamais teria feito. Como um raio, seu olhar se infundiu em minha mente que se deixou inundar com o reflexo da sua luz e fez com que eu também fitasse o Sol por mais tempo que eu seria capaz. (...) E então senti uma coisa que eu seria incapaz de descrever. Algo similar, talvez, à transformação sofrida por Glauco, ao provar a erva que o transformou em um deus. “Transumanizar,” é a melhor palavra que posso oferecer, para algo que não se pode explicar com palavras."
Hoje eu trabalho numa sala que fica em frente a uma impressora que atende a todo um andar do prédio. Como na minha porta há uma parte de vidro, eu vejo, até mesmo sem querer, quem vai à impressora. E, é claro, nessa procissão de gentes, vejo rostos e olhos de todos os tipos. Ontem, por exemplo, já no fim do dia, uma colega que ia à impressora parou em minha sala, e conversamos sobre problemas com os olhos dela - ela teve de parar de usar lentes por um tempo e pensa em fazer uma cirurgia corretiva.

Contudo, eu sei que há, sim, olhos "perfeitos" e iluminados, que sorriem e que tem vida própria e, que mesmo estando o resto do corpo dentro de uma burca, ainda fariam suspirar. Sei que existem, pois já os vi, e queria eu ter sido Dante para imortalizá-los de acordo, como ele fez com a sua musa. Pena, porém, que algo sempre me faltou, e ainda me falta: não creio que algum dia eu seja digno de andar, nem mesmo na imaginação, debaixo do Sol do paraíso...

(imagem: Dante e Beatriz à margem do rio Arno, em imagem do pintor pré-rafaelita Henry Holiday.)

A divina comédia


Me lembro mais ou menos bem de uma vez em que meu pai me deu de presente dois livros ao mesmo tempo: "O tronco do ipê", de José de Alencar, e "O ateneu", de Raul Pompéia. Este último tem um começo que sempre valeu para mim como uma frase algo profética:
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” 
Já mais velho, eu encontrei foi a Universidade de São Paulo, e seu Instituto de Física, que me lembrou outra frase de "abertura",
"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate [Abandonai toda a esperança, vós que entrastes]",
 algo que estaria escrito, segundo a imaginação do poeta Dante Alighieri, nas portas do inferno...

Não me lembro quando li "A divina comédia" de Dante, mas me lembro que o comprei no centro velho de São Paulo, numa loja perto da Praça da Sé. Se não me engano, a minha edição tinha reproduções das gravuras de Gustave Doré, talvez as mesmas que eu encontrei depois num belo e pesado livro que ganhei, contendo as obras completas de Alan Kardec, livro esse que mora hoje na casa de minha mãe, numa rua chamada Raul Pompéia.

Confuso, não? Mas acho que ilustra bem que se minha vida não é um livro, teve (e tem) pelo menos um bocado de livros e autores nela, em cada passo, em cada tempo. E um bocado de poesia, e algumas musas. Mas isso fica para outra hora...

(imagem: ilustração de Gustave Doré para o paraíso de Dante; não me lembro com certeza, mas acho que já usei essa ilustração - e talvez o mesmo título - aqui nesse blog...)

Drogas na escola: alternativas teóricas e práticas


Por conta de uma amiga, acabei encontrando um texto de um psicólogo, Julio Groppa Aquino, que fala, entre outras coisas, d"As drogas como tema transversal", ou seja, das drogas como um dos temas a serem discutidos no ensino formal, "como fios condutores dos trabalhos de aula".

A argumentação do sujeito, embora um pouco longa demais para o meu gosto, é bem interessante. Em poucas palavras, e de acordo com o meu entendimento tosco, a idéia é que os seres humanos têm desejos que podem ser satisfeitos de diversos modos, sendo que tanto o conhecimento quanto as drogas podem servir para saciar tais ânsias. Para um professor seria importante, então, tentar passar, através da educação, a "superioridade" de uma alternativa em relação à outra:
"A transformação proporcionada pela droga é compacta e provisória, ao passo que o conhecimento sistematizado traz marcas gradualmente irreversíveis e extensivas àquele que conhece de fato."
Eu creio que discutir drogas - e sexo - com adolescentes é praticamente uma necessidade: eles irão inevitavelmente encontrar isso vida afora, e se ninguém com um mínimo de conhecimento falar a eles sobre isso, pior para eles. A escola pode servir muito bem para a discussão dos potenciais benefícios e malefícios de quase tudo, e drogas podem (talvez devam) estar nos temas discutidos. No entanto...

Não sei se pregar sobre a superioridade do conhecimento é adequado. Portador de mais de um diploma universitário, eu não sou mais feliz por saber um monte de coisas. Na verdade, até invejo, muitas vezes, os que não sabem muito. O que eu sinto que me faz uma pessoa melhor, e que supre meus desejos, é outra coisa, não o saber: é o amar...

Eu, particularmente, amo o saber, como amo a humanidade e outras coisas, e creio que é isso que eu devo passar aos meus alunos (além dos conteúdos): o amor, e a dedicação ao que se ama. Sei que isso deve soar muuuito piegas e ridículo, e sei também que, na academia, dominada por uma ideologia intelectual anti-emocional e algo hipócrita, falar de amor é se expor ao ostracismo e às piadas, mas se você quer realmente atingir um público mais amplo, não é apenas com argumentos racionais que você vai fazê-lo.

Eu já viajei, muito, e continuo viajando (afinal, esse blog é um diário de viagem), e a maior das minhas viagens, a que realmente me transformou, não foi com drogas, mas também não foi racional, nem física, foi uma epifania (e eu, escolarizado, nem conhecia a palavra, mas não é à toa que eu assino com o nome de um personagem de James Joyce).

Claro, não advogo uma "pedagogia do amor" ou das emoções, em que o professor seja bonzinho e emotivo, e apresente tudo em tons cor-de-rosa (inclusive as avaliações). O que eu gostaria de ver é um ensino que realmente facilitasse a convivência social e a solução dos problemas humanos, e não um blá-blá-blá vazio, do tipo que acaba levando apenas a uma falsa melhoria das estatísticas formais desse ou daquele governo.  O que eu queria ver é outra coisa, diferente do desinteresse, apatia e/ou pragmatismo que sinto em boa parte dos meus colegas e dos estudantes que encontro.

O que eu queria, enfim, não interessa, já que é mesmo outra coisa, que não sei se posso declarar ou definir, e que, hoje, não posso alcançar: hoje, e desde algum tempo, eu quero o impossível, e não há droga ou conhecimento no universo que me faça alcançar isso.

(imagem: quadro do pintor Thomas Cole, intitulado "A viagem da vida - velhice", de 1842)

Eu sou trezentos


Não, eu não sou Mário de Andrade para poder dizer
"Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!"
No entanto, se de poesia, dos Pireneus e caiçaras, dos deuses e do Piauí pouco sei, sei que tenho sensações que não morrem sem antes buscar outras, gerações após gerações de emoções renascidas...

Não sou trezentos, sou um, ou menos, e menos a cada dia, o que é um infinito tormento: mesmo pequeno continuo capaz de amar, e por isso sofro um pouco mais a cada momento.

(imagem: um pôr-do-sol, com sua miríade de cores cambiantes)