segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Ensaio sobre a cegueira


Li, em algum lugar, que olhar seios de mulheres faz bem ao coração: pena, é só mais uma ficção divulgada com força pela internet...

Sei que quando não quero pensar em nada, procuro e acho facilmente mil bobagens digitais, e muitas - muitas mesmo - fotos e vídeos de seios, bundas e tudo mais. Como eu, há muito público para o sexo.

Enfim, às vezes, nessa busca, eu me lembro do que li ainda criança:
"As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam."

E eu via, como uma criança, Deus e a beleza - em uma palavra, a divindade - em cada canto. Hoje, vendo o que vejo, acho que o mundo ficou cego - e eu com ele.

(imagem: screenshot da página de entrada de um site para adultos)

Em busca do tempo perdido


Eu estava na Ilha do Cardoso, quase sozinho, o penúltimo de uma fila numa trilha no mato que vai para o Poço das Antas, quando uma borboleta cortou o meu caminho.

Ela era azul - e gigantesca. Suas asas brilhavam com uma cor irreal, mais azuis que o céu ou que qualquer cor posta em telas ou filmes.

Voou ao meu redor e, breve, voltou a entrar na mata.

E eu, instantaneamente, me lembrei de quando eu era capaz de amar...

(imagem: uma borboleta, na wikipedia)

O tempo e o vento


O horizonte está logo ali; no entanto, mesmo navegando sempre em frente, nunca o alcanço...

O céu, à noite, parece um pomar de estrelas: sinto que é só erguer a mão para alcançá-las; e, contudo, por mais alto que eu vá, não fico um centímetro mais perto...

Dia após dia, continuo aqui, com um oceano ao meu redor e, ao mesmo tempo, sem poder saciar minha sede. Só quando chove, e eu abro a boca para receber algumas gotas, é que me lembro de que nem toda água é salgada...

E como consolo, no meio do silêncio, vem à superfície da minha mente, algumas vezes, a letra de algumas músicas:
"Is this the real life?
Is this just fantasy?
Caught in a landslide
No escape from reality
Open your eyes
Look up to the skies and see
Im just a poor boy, I need no sympathy
Because I'm easy come, easy go,
A little high, a little low,
Anyway the wind blows, doesn't really matter to me,
To me"

Ao longe, vejo clarões e estrondos: será um Ano Novo sendo celebrado em algum canto ou apenas mais uma tempestade? Não faz a menor diferença. Certamente outros tempos virão, em breve, mas não creio que os ventos mudem - e mesmo que mudem, não servirão para mim: estou longe demais da terra...

(imagem: mensagem de Ano Novo, entalhada em madeira, do século XV)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Paraíso Perdido


Acordei, hoje, sonhando que estava de volta ao ensino médio, em uma esola pública. Meio que aturdido pelo sonho, fiquei na cama, antes de levantar, pensando na escola pública e nos alunos que saem dela hoje. E me lembrei de minha infância, passada em escolas públicas.

Lembrei de que tive bons professores - uma de minhas professoras de geografia, por exemplo, era esposa de um escritor famoso, J.C. Marinho Silva, autor de "O gênio do crime", e nos contava de suas viagens à Europa. Outra, professora de química, era esposa de um gerente de banco - na época cargo de muito respeito - e era o exemplo mais vívido que eu tinha de uma "dama". Minha professora de 4a. série nos ensinava canções em francês - não me esqueço do "Frère Jacques, dormez-vous? Sonnez les matines..." E assim vai. Hoje, acho que não há nada parecido nas escolas públicas: a classe média não está mais lá.

Em meu tempo de estudante, o sonho não era estudar num colégio particular, mas no principal colégio público, no centro da cidade (em Guarulhos, o Conselheiro Crispiniano, em Santo André, o Américo Brasiliense, em Mauá, o "Viscondão", todos colégios com vestibulinhos disputados), ou em um colégio técnico, também público, como as ETEs e escolas técnicas federais. Hoje, quem pode paga para separar seus filhos da pobreza (eu, inclusive). As escolas públicas ficaram para os pobres, um reduto de quem não tem recursos e status.

Em meu tempo de estudante, eu ia com meu pai ao centro da cidade de São Paulo, para me maravilhar com as vitrines do Mappin: lá vi, pela primeira vez, quando tinha uns dez anos, uma raquete de tênis - e me deslumbrei! O centro velho de São Paulo tinha muitas coisas boas além do Mappin: a Mesbla, da 24 de maio, as Grandes Galerias, a Ultralar, onde comprei, adolescente, meu Sgt . Pepper's, em LP, a Baratos Afins. Hoje, só há camelôs e as Casas Bahia, e a classe média vai aos "shoppings". O centro velho foi abandonado e virou uma sombra do que já foi.

Em meu tempo de estudante os cursos de licenciatura eram feitos junto com o bacharelado. No IFUSP, onde me graduei, eu tive a opção de cursar as disciplinas da educação junto com as do bacharelado em física. Minha turma foi a última: daí em diante houve uma completa separação dos currículos, e já no vestibular os alunos deviam optar entre licenciatura ou bacharelado, sem intersecção. No final da graduação, fui monitor de uma dessass turmas de licenciatura: só alunos vindos de escolas públicas, de bairros de periferia, com sérias falhas na formação. A classe média não estava lá.

Em meu tempo de estudante, não havia TV paga - a TV era a mesma para todos, ricos ou pobres. Havia programas como Cosmos e Jacques Cousteau para todos. Havia o Chacrinha, é claro, mas não havia o culto da celebridade vazia, como acontece nos tempos atuais, com o Big Brother. Uma celebridade que nunca esqueci , da TV, foi o Mequinho: eu pedi e ganhei no Natal um jogo de xadrez com a marca dele, fabricado pela Gulliver. Onde estão os Mequinhos de hoje? (O Estadão publicava uma coluna de xadrez.) Hoje, a TV aberta é refúgio da pobreza, voltada para ela: a classe média não está lá.

É como se nossa sociedade tivesse se separado. Os ricos - às vezes nem tanto - criaram seus refúgios feudais: condomínios fechados, escolas particulares, coisas como a Daslu, canais de TV particulares, fechados. E os pobres, de fora dessses castelos, ficaram por conta própria, recebendo esmolas e migalhas. Uma visão sombria, provavelmente simplista, mas acho que com um fundo de verdade. Me levantei entristecido.

No café da manhã, ao pegar o jornal, vi que a manchete principal era "Desigualdade educacional no Brasil é ainda maior que a de renda". Juro que eu não sabia.

(imagem: "A queda de Lúcifer", ilustração de Gustave Doré para o livro O Paraíso Perdido de John Milton; a frase famosa desse livro é "Better to reign in Hell, than serve in Heaven" (melhor reinar no inferno, do que servir no paraíso) - vi isso quando era criança, na TV aberta.)

domingo, 23 de dezembro de 2007

Casa Grande & Senzala


Na Folha de São Paulo deste domingo saiu uma entrevista com o autor de um livro sobre o movimento guerrilheiro peruano Sendero Luminoso, "La Cuarta Espada", onde li o trecho:
"Agravava a situação o fato de que os senderistas viviam num mundo muito pequeno. Debatiam e casavam entre si. O extremismo passou a parecer algo normal, porque perderam os referenciais do mundo de fora."

Oras, oras: e as pessoas aqui no Brasil que vivem em lugares como Alphaville (nome tirado de um filme de Godard, eu acho - é interessante comparar o verbete em português com o verbete em inglês na wikipedia), também não vivem em mundos pequenos, debatendo e se casando entre si? Aliás, acho que não é necessário nem ir tão longe: a classe média brasileira, enclausurada em seus bairros e prédios chiques, também não vive debatendo e se casando entre si, ignorando o resto do país?

Já passei por várias universidades públicas, como aluno ou funcionário, e nelas encontrei muito poucos negros ou pardos, que acho eu não são tão minoritários assim na população brasileira (para usar dados, pretos e pardos formavam 44,5 % da população no censo de 2000)... Aliás, segundo o IBGE, no censo de 2000,

"a população que se declarou de cor preta aumentou quase duas vezes mais que a que se declarou branca e oito vezes mais que a parda, mas os brancos constituem 53,7% da população, sendo que, entre empregadores, os brancos são 80%."

Mas o mais interessante que vi foi o ocorrido num curso de bioquímica da USP, que servia de disciplina optativa para mim, mas era obrigatória para os estudantes de odontologia. O professor, na primeira aula, perguntou quem ali tinha pai ou mãe ou irmão ou tio dentista. Acho que só eu não levantei a mão.


Enfim, só mesmo nas novelas a moça pobre se casa com o rapaz rico - e vice versa.


(imagem: a família brasileira, na visão de Debret)

sábado, 22 de dezembro de 2007

Madame Bovary


Ontem, ao almoçar com colegas de trabalho, fui surpreendido por uma moça que disse que se fosse um animal seria um pingüim. Não tenho nada contra os pingüins, acho-os criaturas belas e simpáticas, mas ser um deles não é o meu sonho de vida, e acho que deve ser o sonho de pouca gente. Mas talvez não seja assim: a comunidade Linux, afinal, escolheu um pingüim como símbolo.

Imagino, entretanto, que deve ser mais fácil eu ser um pingüim do que entender as razões por trás dos pensamentos e desejos femininos. Certamente, eu seria incapaz de escrever Madame Bovary...

(imagem: um pingüim, nadando, na wikipedia)

Ensaio sobre a população


Li hoje que a população brasileira não cresceu tanto quanto se imaginava. Mas, para mim, o interessante foi ver a distribuição de pessoas com mais de 100 anos na população dos estados: São Paulo tem cerca de 40 milhões de habitantes e mais ou menos 750 idosos acima de 100 anos, ao passo que Minas Gerais tem 19 milhões de habitantes e 1400 idosos centenários. A Bahia, por sua vez, tem quase 1900 idosos com mais de 100 anos...

A pesquisa do IBGE foi feita apenas em cidades pequenas, e é bastante possível que se cidades grandes fossem incluídas haveria mais centenários em São Paulo. No entanto, eu fiquei com uma pulga especulativa atrás da orelha: como Minas e Bahia têm maior número de negros na população que São Paulo, será que não estaria aparecendo aí uma correlação entre longevidade e raça?

Em tempo: antes que possam me chamar de racista, deixo claro que não gosto do conceito de raça, mas é óbvio que existem diferenças físicas entre caucasianos e negróides. E, bem, eu, "caucasiano" e paulista, sou casado com uma bela moça negra, nascida no interior de Minas...

(imagem: mulheres negras retratadas por Debret)

O mundo como vontade e representação


Ontem, após o almoço, incomodado por um fiapo de carne, fui procurar um palito de dentes, e encontrei apenas uma caixa vazia. Assim, fiz uma anotação mental para me lembrar de ir ao supermercado comprar outra caixa.

No final do dia, lembrei da necessidade de ir ao supermercado e fui. Lá, logo na entrada, havia duas grandes bancas de CDs e DVDs em promoção. Mergulhei por uma boa meia hora na confusão de títulos e acabei comprando um filme antigo, Quadrophenia, com o cantor Sting ainda jovem.

Passei por um sem fim de corredores e gôndolas e, em cada lugar, encontrei alguma coisa útil ou interessante. Comprei uma caixa de leite, um livro infantil, uma camiseta, uma garrafa de vinho francês (de 250 ml - pena que não fabriquem garrafas como essa, individuais, aqui no Brasil: em casa só eu bebo vinho) , xampú, uma pizza, cereais, e mais um mundo de pequenas coisas cotidianas. Nisso gastei uma ou duas horas.

Então já era noite, e eu fui jantar em casa, depois de guardar as compras. Depois do jantar, incomodado com um pedacinho de pizza entre os dentes, fui pegar um palito - e só aí descobri que eu esqueci de comprar a caixa de palitos.

Quando eu comecei a escever esse blog eu tinha um objetivo: escrevi e escrevi, só para perceber que o que eu queria dizer, lá atrás, ainda não está escrito. E tudo isso é só uma metáfora da minha vida: o que eu buscava ainda não encontrei, por me perder entre atividades e pessoas que não têm nada a ver com o que eu queria fazer de mim... Estou - acho que estamos todos - bebendo a cada dia as águas servidas por Maya.

(imagem: túmulo de Arthur Schopenhauer, autor do livro que dá título a esta postagem)

domingo, 16 de dezembro de 2007

Cronistas do descobrimento


Na "Carta do achamento do Brasil", de Pero Vaz de Caminha, encontrei o seguinte trecho:
"E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite."

Mais tarde, os degredados reaparecem no relato:

"Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida."

Relocalizo estes "degredados e desertores" em um livro do historiador Eduardo Bueno, "Brasil: terra à vista!":

"Não existe nenhuma informação sobre o destino dos dois grumetes que desertaram da esquadra de Cabral e decidiram permanecer na nova terra. Provavelmente eram meninos entre os 14 e 16 anos, e é possível que tenham sido "adotados" pelos nativos, passando a viver como eles. Quanto aos dois degredados, abandonados aos prantos à beira-mar, tiveram um exílio tropical de apenas 20 meses: em dezembro de 1501, a dupla foi recolhida pela primeira expedição enviada para explorar o Brasil."

Não sei quem teve melhor destino: se os resgatados, que de início ficaram à força, chorando, ou os sumidos, que desertaram atraídos pela terra nova.

De qualquer modo, escrevi isso tudo só para dizer que descobri há algum tempo que eu faria o caminho dos grumetes, e não derramaria uma lágrima pelas naus que se vão.

(imagem: ilustração da nau de Pedro Álvares Cabral, na Wikipedia)

O livro dos seres imaginários


Comprei ontem "O livro dos seres imaginários", de Jorge Luis Borges: é um dicionário, com um punhado de definições de criaturas que nunca existiram materialmente. Lendo-o, tive a nítida impressão de que eu poderia me candidatar a aparecer como personagem, ainda que secundário, das futuras edições desse livro. Certamente, em uma versão que existe na biblioteca de Babel, eu apareço, numa nota de rodapé.

(imagem: trecho de pintura de Hieronymus Bosch)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Suave é a noite


Na nossa estadia na Ilha do Cardoso houve o aniversário de uma aluna. Seguindo a oferta do pessoal que mora na ilha, aceitamos que eles abrissem um botequinho na beira da praia, por mais ou menos duas horas, na noite de sábado, para que os alunos fizessem uma festinha.

As luzes do bar - um barracão de madeira - eram muito fracas e quase não venciam a noite. Assim, quase ninguém deve ter me visto ir para um canto, onde, vendo as 'crianças' dançar forró e os outros professores conversar, redescobri pela milionésima vez que eu, e acho que apenas eu, não tenho nada a festejar.

Acho que meu lugar não é entre os homens: é numa linha que corre por entre as estrelas e o mar, por entre as ondas e a praia vazia, no escuro de um céu naturalmente iluminado...

(imagem: Noite estrelada, de van Gogh)

A ilha


Estive no Parque Estadual da Ilha do Cardoso acompanhando um grupo de alunos e professores. Numa caminhada de uns tantos quilômetros, na beira da praia, vimos, em dois pontos distintos, dois botos mortos. Sinal de que há muitos deles por lá. Sinal de que a vida, apesar de nós e nosso número, prossegue.

(imagem: praia da Laje, na Ilha do Cardoso)