domingo, 18 de fevereiro de 2007
Sidarta
Para simplificar, imagino que a realidade sou eu, que a realidade são as minhas visões. Que, durante a semana, a realidade é uma série de equações que eu estudo. São meus filhos. O corpo de minha esposa. Minha face no espelho. O mar de prédios que vejo de minha janela. O caleidoscópio de imagens que vejo no YouTube. As músicas que eu conheço. As fotos de minhas viagens. Tudo palpável, colorido, sonoro.
Nem sempre, porém, é tão fácil.
Uma vez, em Angra - na verdade, em Mangaratiba, uma cidade próxima - eu fiquei em um hotel onde estava um físico, que nos presenteou com uma conversa sobre seu último livro, que tratava de algo como "histórias auto-consistentes". Segundo ele, uma bola de bilhar poderia, ao menos em princípio, voltar no tempo para se chocar com ela mesmo, desde que fosse esse choque que a lançasse para o passado. Para isso acontecer, é claro, a mecânica quântica e a relatividade teriam que se combinar cuidadosamente em buracos de minhoca para
evitar os paradoxos vistos em "De volta para o futuro".
Tudo que não é proibido pelas leis da natureza acaba acontecendo, não é? Ou as leis da natureza proíbem a viagem no tempo (uma censura cósmica?) ou elas acontecem, de um jeito ou de outro, até naturalmente, talvez...
Teorias e teorias. Creio nelas pragmaticamente. A verdade? Sei lá qual é a verdade! Nós, cientistas, não temos a verdade, temos um consenso temporário do que é aceitável racionalmente. Mas a verdade, essa escapa sempre. Fica, no entanto, alguma beleza, como a
melodia da relatividade geral, tão silenciosamente bela quanto qualquer obra de Mozart, mais bela que as musas do Carnaval.
Minhas visões são a verdade. Minha verdade, meu pedaço dela. Para mim, uma árvore, no pátio do Instituto de Matemática e Estatistíca da USP, numa manhã ensolarada, há muitos anos, passou a ser mais, muito mais que uma árvore. O sol e a árvore e a manhã eram mais do que a soma de sol, árvore e manhã. A árvore era uma presença, com folhas se movendo por
entre os raios de sol como flocos de neve caindo no solo de um dia de inverno... E em um instante aquela árvore era fora do tempo, braços e ramos se lançando em direção ao sol, imemoriais, eternos, numa sucessão de eventos coexistindo a partir de um único tronco.
Não há matemática que descreva o que eu vi. Não há palavras que descrevam o que eu vi. Não há imagens que descrevam o que eu vi. Ou sons. Ou... A realidade é, e as tentativas de catalogá-la são como os vídeos que aparecem no meu computador, apenas sugestões da qualidade visual que pode ser obtida a partir de um DVD.
Tudo isso para dizer que a ciência não é a verdade: é só uma casa muito bonita, extremamente bem-feita, mas sempre inacabada, onde eu moro. E da minha janela, sem cortinas, vejo a poesia, toda tarde, quando o sol se retira, aos poucos, para dar espaço às estrelas: a realidade é isso.
sábado, 17 de fevereiro de 2007
Odisséia
Por exemplo, eu decidi escrever por razões que não tem nada a ver com a razão. E escolhi um nome racional para o meu "projeto": Atlas. De onde veio esse nome?
Na mitologia grega Atlas era um titã que participou da uma tentativa frustrada de subjugar os deuses do Olimpo. Cada titã teve o seu castigo, dado por Zeus. Para Atlas, a punição foi a de sustentar o céu em suas costas, eternamente.
No entanto, para mim Atlas é mais que uma figura de inúmeras versões de lendas gregas: atlas é uma - a primeira - das sete vértebras da coluna cervical, aquela que sustenta o crânio. Aprendi isso em aulas de anatomia que tive há muitos anos atrás, na mesma época em que descobria as estrelas do céu e, assim, a palavra "atlas" sempre ficou com esse significado especial para mim.
No senso comum, entretanto, um atlas é um livro cheio de mapas. Eu me lembro bem do primeiro que tive, quando eu mal sabia ler: na capa havia uma belíssima imagem da Terra, vista da Lua; em cada página um pedaço do mundo, onde ainda se encontrava o Estado da Guanabara.
A infância e a juventude passaram, ficou a vontade de escrever, num sentido literário: inumeráveis páginas foram gastas para que eu exercitasse os músculos da escrita. Quantas árvores ajudei a destruir inutilmente com palavras perdidas... De qualquer modo, eu sempre imaginei que o primeiro filho literário que eu tivesse se chamaria "atlas". E só agora, depois de anos sem direção, ao sabor dos ventos, criei coragem para finalmente criar um único personagem, que sou eu e não sou.
Meu alter-ego literário praticamente não tem interlocutores: o mundo é só ele. Logo, o único mundo que ele pode descrever é o de seus pensamentos, o único atlas que ele pode escrever é o de suas viagens imaginárias, obtidas de mim. Diferente dele, porém, eu, que vivo no mundo real, convivo com outros protagonistas. Eu tenho um emprego, uma família, mulher e filhos. Ele só existe nas palavras que eu crio. E eu, às vezes, creio que também eu sou ficção...
Na semana em que, chegando em casa de viagem, decidi invocar as musas e libertar as palavras que eu mantinha guardadas, encontrei minha filha brincando com uma coleção de fascículos que comecei a comprar para ela, antes de viajar, em uma banca de revistas. No primeiro fascículo, lançado antes de minha viagem, veio como um brinde um crânio. No segundo, lançado depois de minha decisão, e que só vi bem depois de começar a escrever, vieram o cérebro e o começo da coluna: atlas estava lá, visível, sustenatdo o crânio, acima de áxis e mais um punhado de vértebras.
Se eu fosse místico, diria que nada é coincidência. No entanto, eu, não não sou místico: creio que apenas há mais mar do que terra, com profundezas que escondem mais do que qualquer escritor pode sonhar, com mais do que palavras podem descrever. Por isso mesmo, navegar é preciso, e mapear talvez seja mais.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007
Frankenstein
2. Lâminas de barbear não são novidade, mesmo sendo apresentadas num documentário da TV paga como 'Maravilhas Modernas'. Aparentemente, os homens pré-históricos já se barbeavam com lâminas de pedra. E isso era fundamental para serem escolhidos pelas fêmeas: a ausência de pelos os tornava menos propensos a terem parasitas como piolhos e pulgas e, portanto, eles eram mais saudáveis, o que os fazia serem 'bons partidos'. Ainda hoje esse viés da escolha feminina existe: homens sem barba são os mais preferidos. Pelo menos é isso que dizia o documentário.
3. Li hoje uma notícia que dizia que, segundo o perfil impresso numa moeda antiga, Cleópatra não era tão bela quanto Elizabeth Taylor. Mas certamente ela devia ter seu charme: Cleópatra seduziu dois romanos importante em seguida. Moral? Os homens nem sempre são atraídos pelo valor de face de uma mulher.
4. A informação contrastante vem de "Freakonomics": "De todas as receitas para se dar mal em um site de encontros, deixar de juntar uma foto certamente é a mais infalível..." O que isso significa? Julgamos pela aparência?
5. Fiquei frustrado pela inexistência de uma foto no perfil do Orkut de uma colega: eu queria saber como ela está. No entanto, ela nunca colocou essa foto no site. Qual o motivo para ela se esconder?
6. Eu vivo quase sempre com a barba por fazer, o cabelo grande demais, desregrado. Nunca quis colocar aparelhos ortodônticos. Tenho meus dentes tortos por acidentes com bicicletas na infância, por defeitos de fabricação (minha mandíbula é pequena). Meus olhos são defeituosos e eu, há muito, desisti de usar lentes de contato. Sou o retrato do desleixo e, portanto, posso ser considerado feio. Sou feio. Mas quanto? Quanto disso é natural e o quanto disso é proposital, ainda que mesmo inconsciente? Quanto de mim é feiúra intrínseca, irrecuperável, monstruosidade? E quanto é apenas máscara e desejo de se esconder, auto-punição e auto-piedade? Contudo, eu quero crer que tenho alguma beleza: onde?
7. Uma vez, há muitos anos, fui abordado na Avenida Paulista por uma entrevistadora do Datafolha, que queria saber qual o último livro que eu tinha lido, qual o meu livro preferido. Eu já li tantos livros que nem sei quantos. Impossível dizer um único que seja o melhor. No entanto, ao olhar para a mocinha bem nascida com ares de estagiária e compará-la comigo, me lembrei de imediato de um nome: "Frankenstein", de Mary Shelley. Naquele instante o adotei: meu livro, meu retrato, um livro clássico escrito por uma mulher, quando a esmagadora maioria dos autores clássicos é homem. A visão de uma mulher, romântica, do que é um cientista e dos frutos da ciência. Uma visão de mim.
8. Não sei o que é a beleza. Não sei quem sou. Não reconheço minha foto. Por isso decidi me mapear, pedaço por pedaço, até completar a decrição da ilha que sou. No entanto, não sei se sou competente para tanto: esse é trabalho para um geógrafo, e eu estou mais para um astrônomo...
domingo, 11 de fevereiro de 2007
A náusea
Só quando adolescente vi a Via Láctea pela primeira vez, numa estrada semi-deserta, silenciosa, sem nenhuma fonte artificial de luz ao redor, no interior de São Paulo. Fiquei muito tempo - minutos? horas? - com a cabeça virada para o céu, a alma absorta naquela luminosidade que vinha de tão longe impressionar meus olhos. A sensação que tive então - e que não esqueci - foi
a mesma de quem sai de um quarto escuro e encontra uma sala iluminada: eu demorei a compreender o que estava vendo.
Quando eu percebi, vinte anos haviam passado.
Acordei em Foz do Iguaçu, num domingo. O hotel havia agendado um passeio para o parque das cataratas e, logo, cedo um ônibus nos esperava. Na rua, pela janela do ônibus, vi pessoas carregando folhas de palmeiras, sozinhas ou em grupos, provavelmente indo para a primeira missa da manhã. A chuva nos alcançou ainda na estrada. Seguindo a sugestão de nosso guia, compramos capas de chuva, todas iguais, brancas, de plástico barato. E foi assim,
devidamente paramentados, que fizemos a nossa procissão.
Eu já havia estado nas cataratas. Mas nem mesmo minhas lembranças nem a chuva foram capazes de diminuir meu espanto ou meu choque. Sim, fiquei em choque diante de uma beleza tão absurda, natural, enorme. Senti tristeza e náusea: por que eu não posso ser assim, viver assim? Por que não vejo em mim sequer uma gota dessa harmonia que aqui jorra sem fim?
A cada momento, um punhado de turistas, e eu com eles, para na trilha para tirar fotos, num ritual moderno comum, em que se tenta eternizar algo do deslumbramento que aqui é quase obrigatório. Faço o mesmo, mas tendo já fotos em casa sei que há algo que as fotos não podem mostrar. Eu sinto a necessidade de escrever, juntando as lágrimas e o sorriso que eu não mostro
em público numa descrição talvez mais rasa, talvez mais profunda, mas certamente mais adequada.
Mas o que eu seria capaz de dizer? Como se descreve o indescritível? Imagino um dia em que Deus viesse até mim, me tocando em silêncio, por frações de segundo, iluminando minha alma
de forma mágica. Isso poderia ser registrado? Fotos turísticas são 'provas', que se pode mostrar a outros, de que se esteve em algum lugar. Como se prova algum sentimento?
Durante o caminho, na trilha, borboletas nos acompanham. Bem próximo do final da trilha, bem na boca da queda d'água, eu aviso uma moça ao meu lado sobre elas. E ela responde que não entende como as borboletas podem estar ali, já que há tanto vento, tanta turbulência criada pela água que cai veloz em quantidade. E as borboletas são tão pequenas! Há delas de diversas cores: azuis, amarelas, cinzas... Tento fotografar uma, mas minha câmera não consegue focá-la.
Algo parecido acontece com a moça ao meu lado. Sua capa branca é grande para ela, os braços desaparecidos dentro das mangas, fazendo-a parecer pequena, algo frágil. Como algo tão delicado chegou até ali, com tanta turbulência no mundo?
A chuva parara. Vi moedas no fundo de um pequeno poço feito de rochas, logo abaixo da trilha. As moedas brilhavam com o sol, umas douradas, outras prateadas, metal luzindo inconfundivelmente. Mostrei-as à moça. Ela tirou uma moeda do bolso e creio que fez um pedido silencioso, atirando sua moeda em direção às outras.
De novo a sensação de náusea me atinge: há algo demais aqui, um exagero de beleza que me sobrecarrega, me afoga, me absorve. Uma foto talvez pudesse mostrar parte dessa beleza, mas nenhuma foto seria uma descrição justa, pois qualquer foto é necessariamente rasa como o papel em que ela é impressa, artificial como a tela de uma câmera digital. O real, profundo, denso, não cabe numa foto. Não consigo mais tirar foto alguma: vou para o elevador com a câmera guardada na bolsa.
Na loja de souvenirs, não compro postais, mas me lembro de minha filha: ela merecia estar aqui. Levo, sem pensar muito no que compro, um quati de pelúcia e uma borracha.
Esperando o resto do grupo para poder voltar ao hotel, me sento no chão, como se estivesse muito cansado. Estou: as borboletas, as cataratas, até mesmo a moça que ficou um instante - segundos? minutos? - ao meu lado, tudo isso não pode se perder, não pode se apagar como algo escrito a lápis em um caderno de viagem. Há uma beleza, que eu vi, que é minha, que atravessou meus olhos e que deve se estabelecer em minha alma. Me esforço - e me canso - tentando dar sentido ao que senti, como um ator que tenta relembrar suas falas pouco antes de entrar no palco. O que vem depois? É tudo fugaz, branco e luminoso, frágil como uma borboleta que o vento pode arrastar para longe a qualquer momento, mas eu não quero que tudo se perca, minha perplexidade diante de um universo que se manifesta em borboletas, águas e nos seres humanos que me acompanham.
Há estrelas brilhando na noite, mas para vê-las eu preciso estar acordado. Eu vi as moedas e quis que alguém mais as visse: espero que seu desejo tenha sido atendido. Quanto a mim, acho que vi um pouco do que há por trás das cortinas do mundo. A face do universo é outra, apenas isso, com o contraste entre o real, cotidiano, e o impossível, que só é vislumbrado, sendo absurdamente grande, incomensurável. A visão diária e sensata que aprendi a ter serve para me proteger desse desconforto, dessa naúsea, como me serviu a capa branca barata para me proteger da chuva.
À noite, sozinho em meu quarto de hotel, antes de dormir, vejo na televisão um anúncio do governo do Paraná sobre Foz do Iguaçu, que termina com um slogan: "nós entendemos se você ficar sem palavras". Não tenho mais nada a acrescentar.
No entanto, logo pela manhã percebo que vinte anos se passaram de novo - sou de novo um adolescente e quero escrever poemas sobre as estrelas da Via Láctea.
sábado, 10 de fevereiro de 2007
Floradas na serra
A cidade de Campos do Jordão sempre me pareceu artificial demais: uma cidade de casas de bonecas, um parque temático kitsch para adultos com dinheiro, uma cópia barata de algumas fotos turísticas da Europa... Já estive aqui várias vezes e nada aqui me seduz. Mas eu continuo vindo e sendo seduzido, às vezes, pelo que não existe. No ano passado, fiquei neste mesmo hotel. As pessoas ao meu redor eram basicamente as mesmas, neste mesmo congresso. A mesma paisagem...
Eu me explico: minha rotina consiste em transformar a tudo e a todos em paisagem. Nisto está minha segurança emocional, só assim navego em águas tranqüilas, sem enjôos. Mas às vezes - às vezes - um pequeno reflexo na água me acha na amurada, e eu por um instante me lembro de que o mar é mais do que uma paisagem monótona, de que há profundezas e ondas, e de que eu deveria, ao menos por segurança, aprender a nadar. Tudo, aliás, se resume a ter segurança: as sereias e os leviatãs, os golfinhos e baleias, as focas, os cardumes e gaivotas, o azul da água, o azul do céu, a vida e a cor dos corais, tudo no mar me atrai demais e eu não sei se sei nadar. Mais seguro é ignorar o vento e as marés e apenas navegar como um navio-fantasma, sem fazer barulho ou marola, indo apenas, precisamente, a lugar nenhum.
Nas salas e corredores deste hotel eu encontro várias pessoas, algumas cujo nome e forma eu associo, e algumas que me parecem interessantes demais. Em nome da segurança, porém, não posso permitir que eu as veja e, assim, eu as transformo em nada, me tornando num fantasma que vaga por entre salas e corredores sem existir realmente, sem carne nem osso, preso a minha carne e meus ossos, incapaz de atravessar até mesmo paredes que não existem.
No ano passado, entretanto, eu tive uma visão no auditório do hotel. O que eu vi, não sei descrever ao certo, pois minha caneta, para onde corri logo em seguida, não soube escrever palavras que fizessem sentido. Tampouco a tecnologia de um computador pode me ajudar. Só hoje, passado um ano, de volta ao mesmo auditório, é que olho para a minha caneta e entendo que posso dizer que o que vi era um diamante, aqui, na mesma sala em que estive há pouco.
Por um instante, absurdo de tão longo, um raio de luz bateu nesse diamante e chegou a mim, me fazendo lembrar que eu tinha - ainda os tenho - olhos. Mas isso não foi o principal: luz e diamante se fundiram e formaram umser que veio até onde eu estava. Tal movimento me pegou completamente de surpresa, pois eu nunca acreditei que uma coisa tão repleta de luz e graça pudesse se mover em minha direção. Os opostos se repelem, e eu, por analogia, deveria afastar todo movimento, toda a graça repelida pela minha desgraça. No entanto, além de se mover minha direção e chegar até onde eu estava, a jóia - como pode um mineral ser tão etéreo? - falou comigo, e sua voz era doce.
Seus lábios eram de cristal... vermelhos? Seus lábios eram som mas o som era cristal. O importante, porém, era que seus lábios eram. Eram lábios! Lábios que me absorveram por completo: eu não via, eu não ouvia, eu não existia, apenas aqueles lábios iluminados eram o universo inteiro, só eles respiravam e se moviam... Havia mais, é claro, mas eu não podia perceber muito além: a visão preenchia meus sentidos todos, sinesteticamente.
E tudo durou um segundo, uma miragem que se desfez no próximo movimento. Uma miragem que, ainda que desfeita, permaneceu, imperturbada, para me assombrar com sua perfeição irreal. Acho que posso dizer que vi um anjo: a analogia, ainda que banal, é essa. Eu vi um anjo. E sei que não era um anjo. Era outra coisa, sólida e real, e muito mais angelical que um anjo. Sem milagres, sem divindade: um anjo real, feito de luz e carne.
Naquele instante meus olhos ficaram diferentes. Fiquei mais cego e, pior, passei a temer a reaparição do que eu tinha visto. Passei a andar escondido por entre os corredores e salões, o olhar ao mesmo tempo fugindo e buscando o que eu vi, fingindo que não estava buscando nada, que nada tinha acontecido. E tudo isso, essa visão, há um ano atrás, me fez lembrar de um episódio que vivi quando eu era vivo, jovem de corpo e alma, o que não sou mais, há muito tempo. Uma lembrança como a desperta por um olfato, vaga e ao mesmo tempo aguda.
Jovem, eu era, é claro, puro sentimento, meu coração parecendo ser a fonte de meus pensamentos, com meu cérebro sendo apenas uma máquina para resfriar meu sangue. Eu amava, e voltava da casa de minha amada, a quem eu tinha visto por pouco tempo, e que não me amava. Atravessando uma praça eu senti, na mistura entre o sol e o céu e areia do chão, um poema, que não peguei. Vi suas faces e senti uma euforia imensa ao sentir o brilho do sol nele.
Vi e dancei com as palavras que eram o poema, mas não o peguei, apenas o senti. E naquele momento, naquelas palavras que nunca foram escritas, fui eu o sol. Um sol imenso, muito maior do que qualquer um que exista de verdade. E fui eu um brilhante e um anjo, só que não havia ninguém para ver a minha silenciosa luminosidade. Tal momento foi só local e não se propagou, seu potencial em transformar ou iluminar a realidade não se efetivou: só eu vi o que vi, só eu senti o que eu poderia ter sido e nunca fui.
Na noite passada, chovia. Eu, antes de me recolher ao quarto para dormir, fiquei conversando com algumas pessoas no saguão do hotel. Inquietos, presos pela chuva, meus colegas de hospedagem buscavam o que fazer. Por alguns instantes parei na entrada do hotel, de frente para um outro homem. Por nós - no meio de nós dois - passou uma moça belíssima, vestindo uma blusa, acho que alaranjada, que deixava ver um dos ombros. Meu companheiro imediatamente a seguiu com o olhar, medindo-a como se eu não estivesse lá, através de mim, até ela sumir no outro prédio, disparando em seguida algo como "sabe quem é? tem namorado?" E a comparação, para mim, foi imediata: foi isso, minha condição de homem, que me fez ver o que eu vi?
Sei que foi o mesmo. Mas foi muito mais. Admirar a beleza de um céu estrelado numa cidade pequena é fácil, mas vê-lo como um Van Gogh é muito mais complicado. Uma foto do céu e um quadro de uma noite estrelada de Van Gogh (uma imagem de um quadro assim aparece no lugar da foto de um amigo meu no Orkut) têm ambos a mesma origem, mas são coisas completamente distintas. A beleza radiante da moça que passou por mim, à noite - e que eu fingi não ver - e a beleza do anjo-diamante que eu vi podem ter origens parecidas, ambas fundadas no mundo, mas uma é real, palpável, desejável no sentido mais instintivo, enquanto a outra é quase ilusória, diáfana, assustadora de tão bela. É como a primeira visão que tive da Via Láctea: foi tão marcante, que ainda me lembro dela, enquanto não me lembro, por exemplo, da primeira vez que me percebi apreciando a beleza de alguma mulher. As mulheres e as estrelas ainda estão por aí para serem admiradas nas infinitas noites do mundo, e às vezes elas me lembram disso, mas não foi isso que eu vi: eu vi o infinito numa noite, e a vida, personificada como um brilhante, numa sala.
O brilho do diamante do ano passado, me fazendo lembrar que diamantes existem, parece ter sido como uma faísca que se juntou a outras para acordar uma fênix que não sabia que podia renascer. Há um ano atrás sentei-me à beira da cama (esta mesma de hoje?) e escrevi no mesmo computador de hoje uma carta que joguei ao mar, descrevendo o que quando jovem presenciei. Diamantes são eternos, dizem: porque não podem ser eternas as visões de êxtase que eles provocam, ainda que representadas por um punhado de palavras, ainda que não tenham sido nada real de fato?
Desde então, descobri que é fácil criar, em silêncio, um diálogo entre o jovem tolo que fui e o quase-velho, ainda tolo, que sou, vendo e revendo onde houve e onde podem haver anjos e luz, estrelas e pedras preciosas, construindo castelos de papel, mesmo que por ora preso a um roteiro que passa todo ano nesta mesma cidade de fantasmas tuberculosos e clima sem-graça.
Minha vida, hoje, é só isso, papel, computadores, palavras e equações e, de quando em quando, viagens. Mas eu, do alto de minha falta de sabedoria, sei que não é. É mais. Há muito mais. Mesmo sem ter ido lá, sei que há uma Europa real, sem casas de bonecas. Sei que há castelos que não são de papel: já visitei alguns. Sei que eu, embora mera alma penada, ao mesmo tempo espantalho, leão e robô do mundo de Oz, eu existo e sou real, muitas vezes kitsch, mas ainda assim autêntico, não apenas uma cópia barata de algum outro lugar. E sei, sem os ter tocado no mundo real, que há anjos.
Eu, não tão afortunado quanto qualquer anjo, não sou eterno, e acredito que as marcas que deixarei no mundo serão, provavelmente, tão fracas quanto as deixadas por uma miragem no deserto, mas posso - devo - nem que seja por uns breves instantes, brilhar, ou ao menos espalhar o brilho que encontro, ainda que só em pensamentos como os que jogo ao mar, em alguns dias. Assim, em tempos futuros, de milhões de garrafas, alguma restará provando ao meu espírito, e - quem sabe? - a algum improvável arqueólogo de almas, que eu existi.
E se, por acaso, alguém mais encontar minhas frases, ainda que desconexas e/ou de gosto duvidoso, ficará o agradável mistério de saber que diamante vivo, afinal, era esse que brilhava na sala de um hotel de Campos de Jordão, e que me fez iniciar, finalmente, um diário das minhas jornadas pelo mundo.