terça-feira, 31 de julho de 2007

As obras de Emily Dickinson

Eu escrevo: alguém lê? Não sei. Segundo uma reportagem que li ontem, há cerca de 70 milhões de blogs por aí. Ou seja, a proporção é de um blog para cada 90 pessoas da Terra. Se descontarmos os adultos analfabetos, as crianças e as pessoas que não têm acesso à internet acho que a coisa piora um pouco.

Segundo essa mesma reportagem, a "blogosfera é muito competitiva e masculina, é um jogo em que, para você ganhar, alguém tem que perder. Não é um lugar para conversas ponderadas." Provavelmente, isso é verdade, mas acho que o que essa frase diz sobre a blogosfera se aplica mesmo é a muita coisa em geral, e a uma em particular: troque nela a palavra 'blogosfera' por 'mundo' e veja o efeito.

Quanto a mim, sei o meu lugar. Na periferia, debaixo de um ponte, num quarto empoeirado, num lugar esquecido: não sou 'masculino', viril, agressivo, não jogo para ganhar, nem mesmo para empatar; jogo por não ter nada mais a fazer, por ser obrigado, por estar aqui.

E me lembro de Emily Dickinson, uma mulherzinha muito interessante que encontrei uma vez numa edição barata de uma liquidação de uma livraria de São Paulo:
"I'm nobody! Who are you? / Are you nobody, too? / Then there's a pair of us - don't tell! / They'd banish us, you know."
(Sou ninguém! Quém é você? / Ninguém, também? / Então há dois de nós - não espalhe! /Eles nos baniriam, você sabe.)

Segundo o que li, Emily Dickinson quase nunca saiu de casa, "não foi sequer ao enterro dos pais". E no entanto está aqui comigo, em meus pensamentos, anos depois de ter morrido, mesmo desconhecida e não lida em seu tempo ("sua poesia só se tornou conhecida depois de sua morte").


O que eu quero dizer com minhas palavras, mesmo sabendo que podem estar sendo ignoradas, juntando-se ao som do vento? Sei lá. Emily Dickinson me ajuda:

"Beauty is not caused. It is." (A beleza não tem causa. É.)

Não sou belo, nem escrevo belas palavras. Mas sou, e permaneço, como estas palavras, nem que seja por um instante.

sábado, 28 de julho de 2007

O fim da ciência

Nesta semana assisti um punhado de seminários que abordavam o tema dos 'sistemas complexos'. Uma lista, feita de memória, do que eu vi, inclui o estudo dos neurônios do sistema visual de moscas, um modelo de computador para os neurônios do sistema auditivo humano, o estudo de um circuito de neurônios do sistema gastrointestinal de caranguejos (uma 'rede neural biológica') e sua interação com neurônios artificiais - a abertura desse seminário foi feita com a apresentação de um filminho do seriado "O homem de seis milhões de dólares"-, visões básicas da teoria de informação e entropia, e sei lá mais o quê...

Além das diversas variações de modelos biológicos (feitos por físicos e não por biólogos) houve um seminário sobre previsões climáticas envolvendo sei lá quantas variáveis e simulações computacionais, que levam a crer que boa parte da Amazônia deverá virar um quase-deserto em 50 anos. Mas eu gostei mesmo de um filmezinho mostrando o aparecimento de estruturas complexas em uma mistura de Maizena e água.

Bem, será que eu sei agora o que é um sistema complexo? Acho que não. Fico com a resposta que encontrei num livro lançado alguns anos atrás, chamado O fim da ciência: "complexidade parece se referir ao que você quiser". Entretanto, fazer simulações - o nome técnico é modelagem numérica - parece boa diversão, ou seja, computadores não servem apenas para se ver fotos e blogar e ler e-mails: também servem para fazer ficção cientificamente aceita.

Ôpa, calma lá! Ficção? Sim, um modelo de computador é uma ficção, que pode não ter nada a ver com a natureza, mesmo produzindo resultados que parecem muito com os naturais. Como? Bem as asas de um morcego e de uma ave fazem a mesma coisa, mas apareceram de formas diferentes - são apenas estruturas análogas (acho que é esse o nome técnico). O que eu quero dizer com isso? Acho que simular é investigar possibilidades, algo como recriar a realidade, e não um modo de reproduzir a realidade... Uma pintura é uma pintura, não um cachimbo.

Enfim, resta a questão de como a natureza faz o que ela faz: eu não sei e acho que ninguém sabe, mas é por isso mesmo que há cientistas, e por isso mesmo é interessante - e importante - ser um deles. Meus filhos ou netos, gostaria que fossem cientistas - ou artistas, pois dá quase no mesmo: ambos procuram para que outros encontrem, numa busca sem fim.

(imagem: A traição das imagens, de René Magritte, 'emprestada' da Wikipedia)

A arte de escrever


Tive uma semana complicada, cheia de surpresas. As maiores aconteceram justo na sexta à noite, quando tive de ir a um pronto-socorro. Em casa, mais tarde, na cama, ante o sufoco do primeiro set do jogo de vôlei entre Brasil e Venezuela pelo Pan-americano, desliguei a TV e fui tentar acalmar a mente lendo um livro que, por acaso, me encontrou no Carrefour. No papel, antes adormecidas, esperando por mim, as palavras vieram como um soco:

"Diletantes, diletantes! - Assim os que exercem uma ciência ou uma arte por amor a ela, por alegria, per il loro diletto, são chamados com desprezo por aqueles que se consagram a tais coisas com vistas ao que ganham, porque seu objeto dileto é o dinheiro que têm a receber. Esse desdém se baseia na sua convicção desprezível de que ninguém se dedicaria a um assunto se não fosse impelido pela necessidade, pela fome ou por uma avidez semelhante. O público possui o mesmo espírito e, por conseguinte, a mesma opinião: daí provém seu respeito habitual pelas 'pessoas da área' e sua desconfiança em relação aos diletantes. Na verdade, para o diletante, ao contrário, o assunto é o fim, e para o homem da área como tal, apenas um meio. No entanto, só se dedicará a um assunto com toda a seriedade alguém que esteja envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor, con amore. É sempre de tais pessoas, e não dos assalariados, que vêm as grandes descobertas."

Li isso tarde demais... Eu até conhecia o autor, Schopenhauer, mas não esse texto, saído de Parerga und Paralipomena (aparentemente, segundo o tradutor, algo como "Acessórios e remanescentes"). Pena: agora já me defini como um "diletante profissional" (está lá no perfil disponível no blog desde sua criação). O que eu faço sendo tamanha contradição?


Amo a ciência e o conhecimento acima de tudo, mas como assalariado, preso hoje a uma rotina de trabalho e família e vida social, não consigo me imaginar, hoje, fazendo a mais leve descoberta, quanto mais as grandes: não sou nenhum gênio. Quanto à maioria das descobertas dos homens de área e de gênio que são meus contemporâneos, não me entusiasmo muito por elas, e por isso não consigo imitá-las ou seguí-las: me parece algo como ficar andando em círculos sobre caminhos já demarcados, apenas para poder dizer que se faz algo. E - sei muito bem - por causa disso sou visto por boa parte de meus colegas como um mero diletante, um incapaz ou inútil que por sorte conseguiu um emprego - às vezes, até mesmo eu concordo com eles.


O que fazer, meu caro, Schopenhauer, com toda a minha vontade de conhecer? Eu queria ter respostas para desvendar os céus e abrir até mesmo os portões do inferno, e me esforço para encontrá-las (tive, recentemente, vários problemas de saúde por estresse), mas por ora só tenho palavras, as suas e as minhas: o amor, por o que quer que seja, qualquer que seja, pode muito pouco.


(imagem: Signboard for a Schoolmaster, pintura de Ambrosius Holbein, que serve de capa para o livro A arte de escrever, de Arthur Schopenhauer, numa edição de 2007 da editora L&PM.)

domingo, 22 de julho de 2007

Fausto

Um dos lugares que visitei por algum tempo, o Sonhar, é governado por um Perpétuo, uma entidade antropomórfica de muitos nomes, entre os quais Morpheus. Bem, eu já estive lá e vi muitas coisas estranhas, oscilando entre meus desejos e meus temores.

Por exemplo, eu encontrei o demônio lá. Sim, o demônio, o cramulhão, o coisa-ruim, o capeta, outra criatura de muitos nomes. E eu o encontrei mais de uma vez, com mais de uma face, mais de uma aparência.

Certa feita ele veio a mim como um homem distinto, belo e formoso, bem-vestido, de terno e gravata, e muito, muito bem acompanhado. Falando comigo, me fez lembrar de uma música dos Rolling Stones - "Por favor, permita que eu me apresente: sou um homem de riqueza e bom gosto". Havia duas moças agarradas nele, que me foram oferecidas como cortesia, para que eu soubesse da qualidade dos seus serviços... Não aceitei o presente, é claro, pois logo entendi com quem eu falava. Deixei aquele lugar rapidinho e voltei ao mundo dos despertos, e nunca - nunca mesmo - esqueci daquela conversa.

Quem me vê hoje não entende porque eu ando tão mal vestido.

(A ilustração desta postagem se encontra no verbete Satã da Desciclopédia.)

As aventuras do Barão de Münchhausen

Houve uma época em que eu ia ao cinema com freqüência, pelo menos uma vez por semana. E foi depois do final de um filme, que eu percebi, com enorme espanto, que estava perdido, completamente desorientado, sem noção de onde eu estava ou de como chegara ali.

Naquela época eu tinha juventude, imaginação e iniciativa. Assim, corri até o campo aberto mais próximo e subi em um balão, construído por mim mesmo. Sim, eu fiz um balão de tão grandes dimensões que uma descrição de toda a seda contida nele iria aos limites da credibilidade. De qualquer modo, conforme o balão foi subindo, pude ver os arredores, ampliando meus horizontes. Subi mais e mais e mais até que comecei a ter uma visão geral do mundo lá embaixo, tal qual a que se tem em fotos aéreas ou em mapas.

E era isso que eu queria: em todo mapa se pode ver escrito o nome dos lugares e as linhas de fronteiras, de modo que eu pude não só ler no chão o nome da cidade onde eu me encontrava como também ver as terras vizinhas e seus nomes. Desci e, no solo, fui capaz de saber que caminho seguir dali em diante.

Isso aconteceu há muito tempo atrás. Hoje, em tempos de cinemas tomados por filmes infantis que não me empolgam, e quando se tem o Google Earth à disposição, eu nunca faria isso: fico sempre sentado em minha cadeira, e se precisar me preocupar em como cheguei aqui - ou se quiser procurar qualquer coisa - tenho a internet (e meu blog) para me ajudar.

(imagem: ilustração de Gustave Doré para The Surprising Adventures of Baron Munchausen)

sábado, 21 de julho de 2007

Crime e castigo

É, quando mais jovem eu me apaixonei muitas vezes, muitas mesmo. Nunca deu certo. Mas eu acho que aprendi algumas coisas. Aprendi, por exemplo, que se pode ficar doente de amor, que isso não é coisa de ficção, apenas.

Uma vez, ainda estudante universitário em São Paulo, perdi as esperanças, por conta de uma paixão que nunca seria correspondida. Do nada, adoeci. Uma semana, quinze dias, talvez, de cama, com febre, muita febre, dores pelo corpo todo, sem conseguir respirar, perdendo provas finais de quatro ou mais matérias...

Eu sumi da universidade e nenhum dos meus amigos (que eram poucos) ligou ou procurou saber o que havia acontecido comigo: outra lição. Mas alguém bateu na minha porta, e eu não pude atender. Minha mãe - isso mesmo, eu morava com meus pais - me trouxe o que um vendedor do Círculo do Livro (eu era um cliente fiel) havia deixado para mim: "O vermelho e o negro", de Stendhal, e "Crime e castigo", de Dostoiévski.

Sem conseguir sair da cama, comecei pelo russo. E, não sei se em parte por causa da minha febre ou de meu estado mental, aquele foi o livro mais impressionante que li. De repente, assim, sem mais nem menos, sarei, fui fazer as provas de recuperação e não fui reprovado em nenhuma disciplina. Terminado o curso, que era de ciências exatas, fui fazer mestrado, doutorado - e letras: pois há coisas para as quais só a literatura tem remédio.

(imagem: A ressurreição de Lázaro, de Vincent Van Gogh)

Contato

No filme "Contato", que é baseado em um livro de ficção científica escrito por um cientista de verdade, os primeiros sinais de rádio enviados por (supostos) alienígenas trazem de volta uma transmissão de TV da Terra: a imagem da abertura das Olímpiadas de Berlim, em 1936, por Adolf Hitler.

É mais do que simbólico que a televisão tenha sido inaugurada publicamente pelos nazistas, num evento esportivo. Os nazistas, que entre outras coisas, foram os primeiros a usar aviões a jato, sabiam muito sobre o poder das imagens , da propaganda e sobre a manipulação das massas e seus medos. O nazismo tinha como objetivo principal derrotar o comunismo, que, na época, era o bicho-papão que amedrontava todas as famílias decentes do ocidente. "O império do mal" caiu, depois, mas quem derrotou os nazistas alemães? Depende de quem escreve... Eu fico com o historiador Eric Hobsbawn: "basicamente a vitória sobre a Alemanha de Hitler foi, como só poderia ter sido, uma vitória do Exército Vermelho."

Nestes dias, em que estão acontecendo os Jogos Pan-americanos, em que a imprensa se esforça por explorar mais uma catástrofe, eu me lembrei de Leni Riefenstahl, e "Tropas Estelares", e 1984, coisas sobre as quais um dia devo falar mais. Mas não hoje. Tenho de correr para assistir meu seriado favorito, que começa em minutos...

(imagem: fotografia da série Olympia, de Leni Riefenstahl)

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Sermão de quarta-feira de cinza

Enquanto corre uma onda de histeria coletiva por conta do acidente com um avião no aeroporto de Congonhas, recebo a notícia da morte de meu vizinho, num acidente de carro. No meio de páginas e páginas nos jornais, cadernos especiais e milhares de imagens para os 'mártires' e 'heróis' do vôo da TAM, demoro a encontrar umas poucas linhas falando do meu vizinho, homem comum, que tinha duas filhas pequenas...

Há uma guerra aí fora. Não uma, mas muitas, que, enfim são uma só, há séculos, com faces diferentes em diferentes lugares: tráfico de drogas e balas perdidas ali, manchetes e distorções acolá, manifestações de ódio e preconceito contra uma empregada doméstica (ah! mas ela foi confundida com uma prostituta...) em outro lugar - tudo é uma coisa só, cujo nome não sei dar.
De um lado, os bons, cheios de virtude e certezas e beleza e inteligência, e bom gosto, e de outro os maus, os feios, os incompetentes, os que só tem defeitos e vilania: simples, não é? "E você de que lado está?"

Meu vizinho morreu, mas como não rende muito explorar seu cadáver nessa guerra, ele não será nem sequer esquecido: sua morte trágica, brutal e sem sentido, foi ignorada, quase que por completo. Resta a quem o conheceu, como eu, lembrar.

Em minha mente ficam ecoando frases que ainda lembro dos anos de catecismo de minha infância: "Rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte." Amém!

domingo, 15 de julho de 2007

O pastor amoroso

Hoje, o Brasil se sagrou campeão da Copa América. Meu aniversário é nesta semana. Aparentemente, não há nenhuma conexão entre esses eventos. E, no entanto, para mim eles trazem memórias, de outra Copa, quando a final aconteceu no dia do meu aniversário.

Depois do jogo, fomos a uma cantina italiana no Bexiga. A moça com quem eu saia então ficou comigo naquela noite, como 'presente'. Moramos juntos algum tempo, como amigos, na Bela Vista. Pouco tempo depois, ela se arrependeu de ter permitido a minha presença na vida dela.

Eu fiquei muito arrasado: eu era jovem e amava. Fiquei deprimido por vários dias, e fui aprendendo a não amar. Quem me salvou? Lembro-me como se tivesse acontecido ontem: na primeira vez em que saí de casa, fui a uma livraria e comprei um livro: "O eu profundo e os outros eus". Foi como reencontrar o meu coração.

Por isso decidi escrever, esta história e outras, não para provar que sou sublime, mas para talvez buscar o que eu vi de sublime: minhas palavras são isto, esta busca sem fim, em minha memória e em arranjos de frases, de uma beleza que eu tive em minhas mãos algumas vezes, e que, nos meus raros momentos de lucidez, lembro que existe, apesar de tudo.

Não sei onde anda a moça da Bela Vista: mas sei do eu que viveu lá, capaz de se apaixonar - continuo aqui.

O guardador de rebanhos

Numa votação recente o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, foi colocado entre as "novas sete maravilhas do mundo". Nada contra. Já estive lá, mais de uma vez, e a vista lá é mesmo fantástica.

Já vi outros Cristos também, no interior de São Paulo, no interior do Mato Grosso, em cidadezinhas quase esquecidas, que poucos conhecem. Quantos deles haverá no Brasil? Não sei se alguém já fez essa conta. Enfim, o Brasil é um país muito grande. Poucos são os brasileiros que sabem do seu tamanho, que o conhecem. Nem mesmo seus descobridores o conheceram: no Brasil cabe quase uma centena de Portugais.

Portugal, pequeno, não tem maravilhas na lista em que aparece o nosso Cristo. Não há, porém, o que chorar, caros amigos lusitanos: eu trocava, de bom grado todos os Cristos do Brasil por uma só página de Fernando Pessoa. A pedra de que o Cristo é feita ficará velha e precisará de retoques e reformas, o Rio de Janeiro provavelmente ficará mais sujo, mas a poesia de Pessoa, essa nunca ficará mais feia, e é uma maravilha que eu posso ver hoje, e amanhã, sem gastar um tostão, e sem me submeter ao risco de encontrar balas que alguém perdeu.

O Brasil é grande, mas os brasileiros grandes, ah!, são tão poucos... Talvez mesmo só um Cristo gigante - ou uma multidão deles - para nos redimir.

sábado, 14 de julho de 2007

Pequenos burgueses

Sentado na calçada, na frente da casa dos meus pais, vejo um grupo de mulheres da vizinhança se reunir. Uma delas segura no colo um bebê gordo e branco, enquanto outra tem nas mãos uma vassoura e uma terceira usa um avental de cozinha.

As casas aqui não têm espaços livres: todas enfileiram-se lado a lado, sem gramados ou quintais, num desfile contínuo e desgracioso de muros, portões e grades. Quase não há árvores. As ruas seguem sem vagas para se estacionar: em todo lugar há garagens. A paisagem é, ao mesmo tempo, sempre diferente e monótona.

Minha família é típica deste bairro, formado por pessoas com pouca instrução formal, migrantes, trabalhadores assalariados, moradores comuns de periferia. Gente rotulada de 'simples', para diferenciá-la dos outros, os não-simples.

Os outros, bom, esses são os que trabalham comigo, todos doutores, ou meus alunos, filhos da classe média e da elite, ou as pessoas que encontro na internet, que escrevem e comentam em blogs como eu.

Posso falar de meus colegas do trabalho: são fãs, em sua esmagadora maioria, de MPB, música clássica, rock e jazz. Meu pai, por sua vez, comprou num camelô, muito antes de que eu soubesse da existência de tal produto, um DVD da Banda Calypso, que ele viu e reviu talvez milhares de vezes... Nesta semana fiquei sabendo num almoço que alguns de meus colegas já tinham assistido "O segredo" - minha família nunca ouviu falar nisso.

Deve haver diferenças nesses mundos, mas daqui, da calçada, só vejo uma multidão cinza e entediada. Talvez o problema seja de meus olhos, ou da minha alma, onde todos os detalhes se diluem até se tornarem... detalhes, insignificantes, mínimos. Os homens podem tentar até se diferenciar uns dos outros, mas eu os vejo todos iguais, amorfos como o bebê quase careca que agora toma sol nos braços do seu avô.

domingo, 8 de julho de 2007

Fahrenheit 451

Domingo é dia de leitura de jornais. Gasto duas ou três horas nesse ritual, mais para saber onde me encontro. Em geral, o panorama que se descortina não é dos melhores, e eu prometo a mim mesmo que não perderei mais tanto tempo com uma vista tão dolorosa. Mas, acho que sou masoquista: no domingo seguinte lá estou eu de novo, fazendo tudo igual, folheando páginas e páginas de papel sujo.

A vida é isso mesmo, repetição após repetição, com umas poucas pitadas de sabores inesperados. Afinal, nós, humanos, somos criaturas de hábitos. E hoje, domingo, não foi diferente: encontrei, por exemplo, a notícia de que estudantes universitários lêem pouco, o que, para mim, não é novidade alguma.

Há alguns anos, não muitos, participei de um seminário com o reitor de uma universidade federal, em que apareceu como convidado especial um professor de outra universidade federal, "bolsista de produtividade em pesquisa" nível 1 do CNPq, uma sumidade, experiente e com qualidade, com uma centena de "artigos completos publicados em periódicos" no campo da física. O reitor começou o seminário falando sobre uma pesquisa que mostrava que os alunos universitários liam pouco, menos de três livros por ano, e o pesquisador convidado discorreu sobre assunto em sua palestra.

Bem, a opinião do professor era a seguinte: é assim mesmo que tem que ser. Os alunos de hoje não têm que ler. Num mundo competitivo não há tempo a se perder com leituras e livros: a informação tem que ser rápida, sucinta e objetiva, e para isso a internet basta. Querer que os alunos leiam é um anacronismo, uma visão ultrapassada, jurássica. A platéia, formada principalmente por educadores e pesquisadores da área de educação, foi ao delírio...

Quando estudante de pós-graduação, fui abordado num corredor por outro colega, estudante como eu, que me viu com um livro nos braços - era uma edição das "Tragédias" de Shakespeare. A interpelação dele, séria, foi: "Como você perde tempo com isso?"

Esse é meu país: aqui a elite mais educada acha o suficiente ter um diploma e produzir. Claro, esse é um país capitalista. Aqui nunca será necessário queimar livros por medo de que eles subvertam a ordem. A ordem e o progresso sempre estiveram e estarão a salvo, como nosso lema, a nos guiar entre as estrelas.

sábado, 7 de julho de 2007

Viagens de Gulliver

Uma história que redescobri recentemente começa com seu narrador dizendo que "Condenado, pela natureza e pela fortuna, a uma vida ativa e agitada"... Ah! Quanta inveja! Eu, aparentemente, fui condenado a uma pena diferente, a uma vida de imobilidade.

Já me explico: por conta de ventos, tempestades e minha imperícia, vim parar nesta terra que, descobri recentemente, é habitada por gigantes. Todos, aqui, são muito maiores que eu, que não posso me mover pelo perigo de ser esmagado por eles.

Aqui, não sou um homem. Sou uma outra coisa, tolerado por curiosidade, talvez, mas não um homem. O que eles fazem, eu não posso fazer: não tenho a estatura deles, não tenho sua qualidade, nem sua experiência.

Enfim, foram eles que me disseram, ontem mesmo, que eu não devia me mover, para o meu próprio bem - eles, que podem muito, e que só querem o meu bem, é que deveriam cuidar de tudo, fazer tudo, pensar tudo. São tão perfeitos, eles, estes gigantes: sabem tudo e mesmo que eu quisesse imitá-los não poderia - sei, por eles, que sou inferior em tudo, mas principalmente em tamanho, ambições e alma.

Assim, eu fico quase parado, fazendo apenas algo aqui e ali, consolando-me com palavras inúteis como estas. E o mundo, oras, é deles - eles são homens: eu não. Pelo que aprendi com estes gentis amigos, creio que pertenço à "mais perniciosa raça de pequenos e odiosos insetos que a natureza já permitiu rastejassem na superfície da Terra" (a descrição não é minha, mas eu devo aceitá-la - não sou capaz de descrições tão apuradas).

terça-feira, 3 de julho de 2007

Lúmen

Comecei a semana pensando numa lista, a dos DVDs mais vendidos em lojas "chiques" de São Paulo, publicada pelo jornal "O Estado de São Paulo", em que aparecem o "O segredo" e "Ivete Sangalo". Sinais de quem são meu povo, minha terra, meu país.

Mas os ventos mudam e, quando se permite, com ele avistam-se novas praias: hoje, com um amigo, no trabalho, participei de uma viagem como há muito não fazia. Partindo de uma notícia de jornal - sobre mais um escândalo - fomos divagando, flanando, à deriva, até que em um certo momento chegamos a um mar de livros francês, "Gallica", em que mil tesouros se escondem.

E, no entanto, era apenas a segunda surpresa do presente: antes, recebi, como dádiva, outra indicação francesa, tão ou mais preciosa que a primeira, mesmo sendo uma simples indicação de um filme, no blog de uma jovem moça, que acho que posso chamar de amiga.

O filme era "Os incompreendidos", de um cineasta francês da "nouvelle vague", François Truffaut. Quando a Rede Manchete de TV estreou, há séculos atrás, ele estava lá, atuando em "Contatos imediatos do terceiro grau". Em madrugadas insones da minha infância, vi "Fahrenheit 451" e "Uma noite americana", mas jamais esperava reencontrá-lo agora, onde o encontrei.

Uma indicação que surgiu numa conversa, um filme num blog, e eu fiquei com a sensação clara de que nunca vi antes
sinais tão claros de que navegar é precioso, e de que viver não é preciso.

domingo, 1 de julho de 2007

Alberto Caeiro

Uma amiga me pediu para falar de minhas viagens. Fiquei relutante, não por não ter o que falar, mas por imaginar que o que quer que eu falasse pareceria, para ela, absurdo. Tive medo de assustá-la.

Bem, eu fui à Europa: Paris, Londres, Roma, Veneza, Florença... Detestei Paris quase tanto quanto os parisienses pareceram me detestar, e amei Barra do Garças, no interior do Mato Grosso. No dia de um jogo da seleção brasileira - acho que era Brasil e Japão - fui buscar algo numa lanchonete às margens do rio, próximo ao centro da cidade, e vi, dançando graciosamente, um boto solitário.

Não, o Sena não tem tanta graça quanto o Araguaia, em que molhei os meus pés.
Simples assim, e em outras palavras:
"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".

Pequenos poemas em prosa

Da minha janela eu vejo o céu. Desde criança o vejo e ele continua me parecendo belo, embora simples, quase trivial, mas ao mesmo tempo espetacular... Quantos pores-do-sol eu já vi? Lembro-me de ficar, quando mais novo, olhando as nuvens, procurando formas e padrões em viajantes de algodão vaporoso.

Me lembro ainda de um poema na capa de um Suplemento Cultural do jornal "O Estado de São Paulo", que meu pai comprara (que idade eu tinha, meu Deus? - 10, 9 anos, menos?), e que eu guardei por anos a fio,

"Ah! O que tu amas então, estrangeiro?
– Amo as nuvens… as nuvens que passam… lá longe… as maravilhosas nuvens!
"

Tenho saudade de outras terras em que vivi, onde eu podia ver muito mais estrelas, mas o céu daqui, ainda que manco e doente, é belo - e infinito.