quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Vôo noturno


Passando a mão pelo cabelo dela, fechei os olhos e me vi folheando um livro grosso, de folhas finas e translúcidas de papel bíblia, todo escrito em letras pequenas, preto no branco, que tive dificuldade em entender.

Disse isso a ela, e tive uma resposta inesperada: "Você não tem uma caixa de lápis de cores ou um estojo de pincéis e tintas, mas uma caixa de palavras, que sabe usar para fazer desenhos interessantes!"

Fechei os olhos de novo e vi três sóis desenhados em estilo infantil, um abaixo do outro, numa folha de papel sulfite branco e, em seguida, um quadro noturno desenhado em aquarela, com apenas duas cores fortes, um céu azul escuro encobrindo uma árvore com um balanço, ambos em preto, sem nuances ou detalhes, mas onde se via uma criança.

Me senti calmo como nunca e dormi logo, sem sonhos, embalado por imagens, palavras e o calor da presença dela.

(imagem: meu sonho de consumo quando criança; o título desta postagem vem de eum livro de Antoine de Saint-Exupéry, mais conhecido pelo livro "O Pequeno Príncipe", que tem aquarelas maravilhosas...)

O mundo como vontade e representação


As palavras, me lembra um amigo filósofo, são algo além delas mesmas. Quando eu, alfabetizado, leio num texto a palavra "maçã", eu vejo algo que não está lá de fato, um objeto, uma fruta, que não precisa ser igual a nenhuma fruta que exista no mundo real.

Em outras palavras, as palavras são signos que servem para representar coisas maiores que elas, as palavras. Seria o mundo, também ele, um texto, com suas palavras sendo signos que representam coisas?

Quando eu vejo uma maçã, eu estou vendo uma maçã ou apenas lendo no texto do mundo a "palavra" maçã, uma representação de algo maior que o que eu vejo? Será que o meu cérebro foi alfabetizado para ler o mundo do jeito que nós homens o lemos? E se, sendo assim, eu me deparar com outros signos que não fazem parte do alfabeto que eu conheço?

O mundo como representação: a idéia não é minha, nem é nova. O que é meu é a minha vontade de entender as coisas e navegar na realidade além da realidade...

(imagem: uma representação de Schopenhauer, filósofo que escreveu o livro de onde saiu o título desta postagem; eu sei, eu deveria era citar outro filósofo, o fundador da semiótica, mas eu gosto do título do Schopenhauer...)

O homem e seus símbolos


Existem palavras e existem coisas. E as palavras, pelo menos como eu as sinto, podem ser vistas como coisas que usamos para descrever coisas que, às vezes, nem existem mesmo, a não ser como palavras ou como idéias...

Por favor, me desculpem se nada do que eu escrever aqui hoje fizer sentido. Em certos dias eu acordo confuso, e hoje é um dia desses. Acordei com várias palavras na cabeça e, só para exemplificar minha incoerência mental, cito duas delas que vieram à superfície dos meus pensamentos sem o menor motivo: atemóia e Würzburg. Eu sei mais ou menos o que é uma atemóia - algo parecido com uma pinha - e sei também que Würzburg é uma cidade alemã. O que eu não atino é a razão dessas duas palavras me aparecerem assim, de sopetão.

Usando um bocadinho de imaginação, talvez eu até pudesse escrever um ensaio intitulado "A atemóia de Würzburg", aproveitando essa súbita "inspiração". E nesse ensaio eu poderia escrever que em Würzburg há uma residência do principado - um palácio - que foi considerada pela Unesco algo como um dos patrimônios históricos do mundo, lugar onde há uma pintura de um artista barroco - Tiepolo - mostrando o imperador Frederico I (também conhecido como Barbarossa), do Sacro Império Romano, se casando com uma tal de Beatriz de Borgonha, em algum ponto da idade média. Eu poderia falar da atemóia como sendo uma fruta algo barroca, feita do casamento improvável de uma pinha com "uma fruta andina chamada cherimóia" (isso gerou "uma fruta saborosa e doce como a pinha sem alguns de seus inconvenientes: pouca resistência a pragas, baixa durabilidade e muitas sementes"). E daí eu aproveitaria para fazer algum paralelo, entre casamentos e seus frutos, mas isso não responderia à minha pergunta: de onde, dentro de mim, saíram essas palavras?

Não sei. Talvez o caminho seja outro. Eis outras informações que a internet me oferece: uma atemóia é uma fruta que "possui aspecto rústico devido à casca rugosa e pontiaguda, semelhante à da graviola", mas que tem em seu interior "polpa branca e macia". Já sobre a tal da Beatriz de Borgonha  pode-se ler, na wikipedia em inglês, que
"Beatrice was active at the Hohenstaufen court, encouraging literary works and chivalric ideals. She accompanied her husband on his travels and campaigns across his kingdom, and Frederick Barbarossa was known to be under Beatrice's influence."
[Beatriz era ativa na corte de Hohenstaufen, encorajando trabalhos literários e ideais de cavalaria. Ela acompanhou seu marido em suas viagens e campanhas pelo reino, e Barbarossa estava sob sua influência.]
Há também o seguinte poema sobre ela:
Venus did not have this virgin's beauty,
Minerva did not have her brilliant mind
And Juno did not have her wealth.
There never was another except God's mother Mary
And Beatrice is so happy she excels her."
[Vênus não tinha tal beleza virginal,
Minerva não tinha sua mente brilhante
E Juno não tinha sua saúde.
Nunca houve outra assim, exceto Maria, mãe de Deus
E Beatriz é tão feliz que a ultrapassa.]
Bem, talvez inconscientemente, eu tenha visto em algum lugar - onde? - algo sobre Würzburg, e por um instante tenha sentido o desejo de ser imperador do Sacro Império Romano, para me casar com alguém como a rainha Beatriz, mesmo que essa pessoa, por fora, não indique o sabor, a doçura e a polpa branca, e seja improvável e incomum como uma atemóia.

Ou talvez nada disso faça sentido: as palavras "atemóia" e "Würzburg" talvez sejam para mim símbolos de outras coisas que não têm nada a ver com a fruta atemóia e a cidade de Würzburg (símbolos de quê?).

Pois é: a alma tem caminhos que a razão desconhece, e eu, confuso, não conheço a minha, nem os meus caminhos... Por isso escrevo: talvez assim, no meio de um milhão de palavras, eu me desvende e veja a realidade.

(imagem: o quadro de Tiepolo; o título desta postagem vem de uma obra de Jung)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Desvendando o nosso lar


É, eu fui assistir "Nosso Lar". Fiquei sabendo depois que minha mãe adorou. Como eu não sou minha mãe, minha opinião é diferente, bem diferente.

Como cinema, o filme é fraco. Boa fotografia, boa produção, bons efeitos, música legal - e um ritmo modorrento. Ideologia religiosa empurrada com imagens bonitinhas - e só. Aliás, tudo muito bonitinho, especialmente o uso de Beethoven.

Como não sou adepto do espiritismo, assumo que as idéias presentes em "Nosso Lar" saíram da cabeça do sujeito que escreveu o livro (que, aliás, eu li). "Magnetismo" movendo "aerobuses" (será assim o plural da palavra?), montanhas espirituais acima da Terra, ministérios múltiplos, tudo me parece só uma visão utópica ingênua, ingênua... Faltou mostrar no filme o ensino de esperanto, que até onde me lembro era praticado em Nosso Lar, e não serve para nada na Terra.

Supondo que Chico Xavier inventou tudo, de onde ele tirou as idéias? Talvez de uma mistura de cristianismo com ficção científica do século XIX e começo do século XX. Talvez de uma alma romântica e sonhadora, que precisava acreditar num futuro melhor. Talvez de um espírito que o guiava. Sei lá. Só sei que nesse idealismo todo há a necessidade de muros, casas e famílias, o que, para mim, é triste. Se é para ser espírito desencarnado, eu iria tentar ter a liberdade dos lírios do campo, que não tecem nem fiam... E não é preguiça, não. São Francisco de Assis viveu, em carne e osso, sem nada, ou com muito pouco: por que eu, sabendo-me espírito, não iria tentar o mesmo?

E além da falta de desapego às estruturas terrenas, o que mais me incomoda na utopia de Chico Xavier é a falta de estudos: no filme, ninguém aparece estudando nada, a não ser histórias e dramas familiares. O próprio André Luiz é encorajado a estudar na prática, e alguém lhe diz, num arroubo antintelectual, que diplomas - da Terra - não valem nada.

Mas é assim mesmo o espiritismo. Os textos, em geral, não têm uma única expressão matemática. Ciência exata, nada; toda a preocupação é, no máximo, com a medicina. Os espíritos livres do corpo e ninguém se põe a pensar em álgebras e equações, ou na estrutura da natureza do mundo espiritual. Só tagarelices de psicólogos de botequim, ou floreios de filosofias de auto-ajuda, ou poemas e romances...

Talvez seja fácil entender o porque do protagonista ser um médico: na ânsia de apresentar uma visão científica, Chico Xavier escolheu alguém que representasse a única ciência que ele, homem simples do interior do Brasil, devia conhecer ou respeitar - a medicina. Pena: ciência é mais que isso, muito mais, e um cientista de ciência básica teria muito mais a dizer que um médico. Mas Chico Xavier provavelmente pouco sabia de ciência de verdade.  Os espíritas, e sua literatura, em geral, pouco sabem de ciência (é, eu li quase toda a coleção de André Luiz, e muito Kardec, Chico e Divaldo e Zíbia e outras tantas obras do panteão espírita).

A literatura espírita está cheia de jargões pseudocientíficos: fluidos, energias, vibrações, magnetismos, dimensões... Nada além de palavras vazias, que revelam o desconhecimento. Ou o desejo de usar uma roupa mais bonita.

Enfim, eu gosto - gosto mesmo - da idéia de que a vida continua após a morte (de que há uma lei de conservação da consciência, por exemplo), mas ainda não vi quem a apresentasse de forma consistente, em coerência com a ciência contemporânea. O que eu vi, nesse "Nosso Lar" inclusive, foi um festival de doutrinação cristã, com farta distribuição de produtos adocicados e coloridos que agradam pessoas cheias de desejos e esperanças, mas que não sobrevivem a uma análise madura (de que material é feito o mundo espiritual? átomos? campos? matéria escura? neutrinos? WIMPs? não dá para dar nenhuma dica? não tem nenhum relato feito por espíritos que estudam isso?).

Pena.

(imagem: o título desta postagem vem de um livro que vi exposto numa livraria para aproveitar o sucesso do filme; a imagem é de um selo comemorativo dos Correios, com Chico Xavier - ele tinha problemas de visão?)

Nova gramática do português contemporâneo


O mundo é um texto, feito de letras que formam palavras, e palavras que se juntam em frases. Eu, você, o ar entre nós, os átomos de nós todos e de cada coisa, e até mesmo os componentes desses átomos, tudo são letras que se uniram numa narrativa enorme e complicada, que é escrita continuamente, em cada instante.

Todo texto tem um suporte: papel, a tela de um computador, a pele seca de um animal. E entre as letras de um texto há uma ordem, e espaços, pausas. Com o mundo não é diferente.

Pois é isso que eu queria: tocar, no mundo, o que não é palpável, agindo como quem molda nuvens, agindo no espaço que dá suporte ao real, no espaço entre as letras que compõem o texto do mundo, compondo de lá uma canção feita de silêncio e pausas, e que assim mesmo seja impossível de se ignorar.

Eu queria escrever nas entrelinhas, e sem dizer uma palavra diretamente, ser perfeitamente entendido.

Eu queria ser isso, sutil, imaterial e penetrante como a beleza que vejo na moça que eu amo, indescritível como o amor que eu sinto: não uma palavra, mas a ação por detrás e dentro dos verbos.

Eu queria que ela me entendesse assim.

(imagem: Mário de Andrade, um sujeito que escreveu "Amar, verbo intransitivo" que, se não é um bom livro, pelo menos tem um bom título, que parece que não era o original - “O livro se chamava Fräulein de primeiro; mudei o título por causa de errarem a palavra na pronúncia”)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O nascimento de uma nação


Eu tenho uma amiga que está acompanhando uma disciplina de um curso de cinema, sobre a construção de imagens. Ela já viu um bocado de coisas, desde o cinema alemão clássico até o início de Hollywood, e de vez em quando nós conversamos sobre algumas das coisas que ela viu.

Pois eu também tenho dois olhos e por meio deles o mundo me apresenta uma infinidade de imagens...Não é algo como uma escola de cinema, algo que eu nunca frequentei, mas acho que também dá para se divertir e talvez até aprender algo.

Enfim, imagens: é isso que transborda de "A origem", filme com Leonardo DiCaprio, que envolve uma trama complicada e camadas sobre camadas de imagens. Há um virtuosismo nos efeitos visuais do filme que impressiona quando misturado com as sutilezas do enredo, mas no fundo, debaixo disso tudo, a idéia central do filme é brincar com a mesma questão que se brincava em "Matrix": o que é a realidade? Ou seja, "A origem" é um sub-"Matrix", com desnecessárias perseguições, lutas em paredes e tiroteios, tão típicos do cinemão americano.

Só para comparar, há mais de um episódio de "Jornada nas estrelas: a nova geração" em que um dos personagens entra no mundo onírico (ou subconsciente) de outro, e nesses casos os roteiristas, provavelmente por restrições orçamentárias, não usaram perseguições e edições espertas, mas imagens simbólicas mais simples e nem por isso tão menos eficientes. E há, é claro, "O conto do sábio chinês", de Raul Seixas, direto lá do começo dos anos 80...





Imagens de uma coisa para se mostrar outra é o que há em "Distrito 9", um filme de ficção científica que é uma alegoria:
"Uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico (vide: retórica), que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal. Diz b para significar a. Uma alegoria não precisa ser expressa no texto escrito: pode dirigir-se aos olhos e, com freqüência, encontra-se na pintura, escultura ou noutras formas de linguagem."
Do que fala "Distrito 9"? Não precisa muita genialidade para se perceber que um filme cuja história se passa na África do Sul, mostrando uma favela para refugiados alienígenas não é exatamente um filme de ficção científica. De qualquer forma, eu gostei bem mais de "Alien Nation", com James Caan (em português, "Missão Alien"), que era menos pretensioso e com menos (bem menos) recursos visuais. Na minha modesta opinião, "Distrito 9" é fraquinho, passável mas fraquinho.

Imagens inúteis, sem rumo, é o que se vê em "O dia final", péssimo filme de ficção científica e terror, que é uma refilmagem de um filme inglês da década de 60 ("The day of the triffids", no original). O criativo roteiro desse filme resume-se a uma história passada num futuro não muito distante, em que há plantas carnívoras que andam, criadas e mantidas em cativeiro pelos seres humanos, e que se libertam para destruir a humanidade, logo depois de uma tempestade solar que cega a maior parte das pessoas. Eu não consegui ver nem metade, mas na parte inicial pensei que se tratava de um sub-"Ensaio sobre a cegueira". Que nada! Era mesmo só mais um filme B do século XXI, isto é, um filme B sem a criatividade ou o charme dos filmes B originais.

Por fim, imagens algo kitsch e ensossas é o que se encontra em "Engel e Joe", filme alemão de adolescentes, feito em 2001 provavelmente para adolescentes, e aparentemente escrito pelo mesmo roteirista de "Christiane F.", filme polêmico da década de 80. É uma historinha de amor, "inha" mesmo, que me lembrou um pouco "Kids", de 1995, sem a AIDS. Numa citação do imdb:
"Kids is basically a movie that warns you what the hell could be happening to your very own child."
Tá bom, um pouco interessante, mas... Depois de ver esse filme, eu recomendo a leitura de "O senhor das moscas", e como história de amor entre adolescentes, "Romeu e Julieta": certamente dá para aproveitar mais.

Para terminar, acho que hoje, no seu curso de cinema, minha amiga vai assistir "O nascimento de uma nação", de D. W. Griffith, de 1915, um clássico do cinema que fala da Guerra Civil americana, enquanto eu, bem, eu devo assistir "Nosso lar", um clássico da literatura espírita, de 1944, que eu vejo como uma obra de ficção científica. Se isso quer dizer algo, deve ser sobre a imagem que projetamos no mundo...








(imagem: definição de imagem numa imagem da wikipedia...)