Nasci na periferia de São Paulo e durante muito tempo quase nunca saí dela.
Só quando adolescente vi a Via Láctea pela primeira vez, numa estrada semi-deserta, silenciosa, sem nenhuma fonte artificial de luz ao redor, no interior de São Paulo. Fiquei muito tempo - minutos? horas? - com a cabeça virada para o céu, a alma absorta naquela luminosidade que vinha de tão longe impressionar meus olhos. A sensação que tive então - e que não esqueci - foi
a mesma de quem sai de um quarto escuro e encontra uma sala iluminada: eu demorei a compreender o que estava vendo.
Quando eu percebi, vinte anos haviam passado.
Acordei em Foz do Iguaçu, num domingo. O hotel havia agendado um passeio para o parque das cataratas e, logo, cedo um ônibus nos esperava. Na rua, pela janela do ônibus, vi pessoas carregando folhas de palmeiras, sozinhas ou em grupos, provavelmente indo para a primeira missa da manhã. A chuva nos alcançou ainda na estrada. Seguindo a sugestão de nosso guia, compramos capas de chuva, todas iguais, brancas, de plástico barato. E foi assim,
devidamente paramentados, que fizemos a nossa procissão.
Eu já havia estado nas cataratas. Mas nem mesmo minhas lembranças nem a chuva foram capazes de diminuir meu espanto ou meu choque. Sim, fiquei em choque diante de uma beleza tão absurda, natural, enorme. Senti tristeza e náusea: por que eu não posso ser assim, viver assim? Por que não vejo em mim sequer uma gota dessa harmonia que aqui jorra sem fim?
A cada momento, um punhado de turistas, e eu com eles, para na trilha para tirar fotos, num ritual moderno comum, em que se tenta eternizar algo do deslumbramento que aqui é quase obrigatório. Faço o mesmo, mas tendo já fotos em casa sei que há algo que as fotos não podem mostrar. Eu sinto a necessidade de escrever, juntando as lágrimas e o sorriso que eu não mostro
em público numa descrição talvez mais rasa, talvez mais profunda, mas certamente mais adequada.
Mas o que eu seria capaz de dizer? Como se descreve o indescritível? Imagino um dia em que Deus viesse até mim, me tocando em silêncio, por frações de segundo, iluminando minha alma
de forma mágica. Isso poderia ser registrado? Fotos turísticas são 'provas', que se pode mostrar a outros, de que se esteve em algum lugar. Como se prova algum sentimento?
Durante o caminho, na trilha, borboletas nos acompanham. Bem próximo do final da trilha, bem na boca da queda d'água, eu aviso uma moça ao meu lado sobre elas. E ela responde que não entende como as borboletas podem estar ali, já que há tanto vento, tanta turbulência criada pela água que cai veloz em quantidade. E as borboletas são tão pequenas! Há delas de diversas cores: azuis, amarelas, cinzas... Tento fotografar uma, mas minha câmera não consegue focá-la.
Algo parecido acontece com a moça ao meu lado. Sua capa branca é grande para ela, os braços desaparecidos dentro das mangas, fazendo-a parecer pequena, algo frágil. Como algo tão delicado chegou até ali, com tanta turbulência no mundo?
A chuva parara. Vi moedas no fundo de um pequeno poço feito de rochas, logo abaixo da trilha. As moedas brilhavam com o sol, umas douradas, outras prateadas, metal luzindo inconfundivelmente. Mostrei-as à moça. Ela tirou uma moeda do bolso e creio que fez um pedido silencioso, atirando sua moeda em direção às outras.
De novo a sensação de náusea me atinge: há algo demais aqui, um exagero de beleza que me sobrecarrega, me afoga, me absorve. Uma foto talvez pudesse mostrar parte dessa beleza, mas nenhuma foto seria uma descrição justa, pois qualquer foto é necessariamente rasa como o papel em que ela é impressa, artificial como a tela de uma câmera digital. O real, profundo, denso, não cabe numa foto. Não consigo mais tirar foto alguma: vou para o elevador com a câmera guardada na bolsa.
Na loja de souvenirs, não compro postais, mas me lembro de minha filha: ela merecia estar aqui. Levo, sem pensar muito no que compro, um quati de pelúcia e uma borracha.
Esperando o resto do grupo para poder voltar ao hotel, me sento no chão, como se estivesse muito cansado. Estou: as borboletas, as cataratas, até mesmo a moça que ficou um instante - segundos? minutos? - ao meu lado, tudo isso não pode se perder, não pode se apagar como algo escrito a lápis em um caderno de viagem. Há uma beleza, que eu vi, que é minha, que atravessou meus olhos e que deve se estabelecer em minha alma. Me esforço - e me canso - tentando dar sentido ao que senti, como um ator que tenta relembrar suas falas pouco antes de entrar no palco. O que vem depois? É tudo fugaz, branco e luminoso, frágil como uma borboleta que o vento pode arrastar para longe a qualquer momento, mas eu não quero que tudo se perca, minha perplexidade diante de um universo que se manifesta em borboletas, águas e nos seres humanos que me acompanham.
Há estrelas brilhando na noite, mas para vê-las eu preciso estar acordado. Eu vi as moedas e quis que alguém mais as visse: espero que seu desejo tenha sido atendido. Quanto a mim, acho que vi um pouco do que há por trás das cortinas do mundo. A face do universo é outra, apenas isso, com o contraste entre o real, cotidiano, e o impossível, que só é vislumbrado, sendo absurdamente grande, incomensurável. A visão diária e sensata que aprendi a ter serve para me proteger desse desconforto, dessa naúsea, como me serviu a capa branca barata para me proteger da chuva.
À noite, sozinho em meu quarto de hotel, antes de dormir, vejo na televisão um anúncio do governo do Paraná sobre Foz do Iguaçu, que termina com um slogan: "nós entendemos se você ficar sem palavras". Não tenho mais nada a acrescentar.
No entanto, logo pela manhã percebo que vinte anos se passaram de novo - sou de novo um adolescente e quero escrever poemas sobre as estrelas da Via Láctea.
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