terça-feira, 19 de outubro de 2010

O mito de Sísifo (ou Orfeu e Eurídice)

É hora de fechar este blog: eu não sei mais escrever.

Ontem cheguei ao fundo do poço. No começo do dia encarei o abismo por longos minutos, decidindo se dava um passo à frente ou não, depois vaguei o dia todo a pé sem rumo, sem lugar para ir e sem praticamente falar com qualquer pessoa, só para terminar o dia muito cansado.

Na verdade, dizer que eu estava muito cansado é pouco. Em minha sala de trabalho há um gaveteiro móvel pequeno, de três gavetas; apaguei as luzes da sala e da frente dela, movi o gaveteiro alguns centímetros e deitei no chão, entre ele e a parede, pateticamente escondido do mundo. Oito de cada dez pensamentos meus eram realmente deprimentes e os outros dois não significavam nada. Dormi sentindo o frio do chão e balbuciando qualquer coisa, tendo comido durante o dia todo um cookie, um Polenguinho, um copo de suco de laranja, um café, uma esfirra, mais um café e duas bolachas.

E hoje às seis da manhã eu estava de pé de novo. Para quê?

Estou acabado, e acho que este blog deve também acabar: assim seja.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O náufrago

Trecho que encontrei num blog por aí:
"we are all alone, born alone, die alone, and — in spite of True Romance magazines — we shall all someday look back on our lives and see that, in spite of our company, we were alone the whole way. I do not say lonely — at least, not all the time — but essentially, and finally, alone. This is what makes your self-respect so important, and I don’t see how you can respect yourself if you must look in the hearts and minds of others for your happiness."
Tá bom, mas ninguém nasce sozinho: todo mundo que nasceu esteve até o instante do nascimento ligado por um cordão umbilical a outra pessoa. E ninguém vive sozinho: tente viver sozinho mesmo - sem ler ou ver ou usar algo que outra pessoa fez - e você vai ver o quão acompanhado estamos.

A solidão não é um fato por si só: somos ilhas, mas ao nosso redor há um oceano repleto de outras ilhas, e elas interagem umas com as outras, às vezes mais, às vezes menos.

Enfim, esse texto me capturou por eu ter passado o dia de hoje quase inteiramente sozinho, falando comigo mesmo e praticamente ninguém, tal como o personagem de Tom Hanks... 

That joke isn't funny anymore

Pelos últimos três dias tenho sido assombrado por uma música, que toca sem parar dentro de mim, imprecisa e incompleta como qualquer memória, mas mesmo assim insistente, permanente e pungente.

Fui ao YouTube descobrir que música era, e depois de um pouco de pesquisa, encontrei. Assim que a ouvi sofri um baque, com calafrios, dor no peito e tudo mais que deve acontecer quando se vê um fantasma. A letra, que eu não lembrava, que devo ter conhecido há muitos anos, fala quase que exatamente para mim... É fantástico como o cérebro tem capacidades imensas, em geral ignoradas ou adormecidas.

De qualquer modo, é o refrão que me assombra: "I've seen this happen in other people's lives, now it's happening in mine."

sábado, 9 de outubro de 2010

O turista acidental


Às vezes, quando eu não quero mais trabalhar, saio por aí, mesmo que seja sentado em frente ao computador. Às vezes, encontro gente e lugares interessantes, e às vezes não.

Mas foi assim que encontrei uma entrevista do cartunista Laerte em que ele aparece vestido de forma não convencional, lembrando muito a irmã dele(que eu acho que vi em algum documentário) e um personagem de seus quadrinhos (que eu acompanho regularmente há anos).

Me surpreendeu também o blog onde encontrei isso, não pelo blog, mas pelo perfil da autora, que tem Flickr, Orkut, Facebook, e sei lá o que mais (incluindo uma "curiosa" lista de desejos): não sei se eu me exporia desse jeito, ou o que isso quer dizer sobre a moça, mas vejo nisso um sinal desses nossos tempos - o mundo com pessoas de todo tipo (e de todo tipo de vestuário) está na ponta dos nossos dedos, pronto a alcançar nossos olhos.

(imagem: o título desta postagem tem a ver com o que eu escrevi e também com o nome de uma das personagens do filme de onde ele, título, saiu...)

Drive

Há uma música do grupo REM que eu queria colocar aqui, mas que o YouTube não permite incorporar facilmente. Fica o link, e um pedaço da letra (sem tradução):
"Hey kids, rock and roll
Nobody tells you where to go, baby

What if I ride? What if you walk?
What if you rock around the clock?
Tick-tock, tick-tock
What if you did? What if you walk?
What if you tried to get off, baby?

Hey kids, where are you?
Nobody tells you what to do, baby"
E essa postagem vai sem imagem nenhuma mesmo.

Publicar e perecer


A relatividade geral, teoria elaborada por Albert Einstein, está prestes a fazer cem anos. Quase cem anos, e eu ainda a estudo com admiração.

É bastante possível que em cinquenta anos eu esteja morto. E que daqui a cem anos estejam mortos os que tiveram lembranças de mim. Antes de tudo isso, porém, o mais provável é que tudo que eu escrevi - poemas, textos soltos, este blog, artigos científicos - já tenha sido esquecido e apagado.

Na academia, o lema é publicar ou perecer: e assim pilhas de palavras, gráficos e equações são produzidas apenas para aumentar a quantidade das coisas que irão, rapidamente, para o lixo da história, inflando por algum tempo o ego e a reputação local de alguns. Meus colegas cientistas contemporâneos são todos mais produtivos e de maior reputação científica que eu. No entanto, duvido que daqui a cem anos algo que algum deles - e que eu - tenha publicado até hoje venha a ser lembrado...

Pois é, não quero entender como tanta energia pode ser gasta em tanto trabalho vazio: acho mesmo que eu já deveria estar no lixo. Só que, enquanto isso não acontece, irracionalmente continuo produzindo textos vazios como estes.

(imagem: as árvores produzem folhas, elas caem ao solo e novas crescem para que a árvore sobreviva e cresça - será assim a ciência? O título desta postagem vem de um livro onde há um personagem que, à beira da morte, pensa: "This can't be happening to me. I've got tenure.")

sábado, 2 de outubro de 2010

Política


Amanhã é dia de eleição para presidente, senador, governador, deputado federal e deputado estadual.
Eu prefiro ciência, eu prefiro poesia, eu prefiro amor, mas não posso esquecer da política. Fui eleito um punhado de vezes, para um punhado de coisas: representante dos estudantes aqui, membro do centro acadêmico ali, representante dos docentes, vice-diretor - sempre eleito, nunca indicado.

É, eu prefiro ciência e poesia, mas não posso mesmo esquecer da política. É por meio da política que se pode ajudar a construir um mundo com mais ciência e poesia. Sem pão, até dá para escrever uns artigos, ter idéias, sonhar; mas é muito mais fácil fazer isso de barriga cheia. E é a política que direciona o caminho de uma sociedade, indicando quem, na sociedade, vai receber mais ou menos pão.

Eu sonho com uma sociedade em que o pão abunde, sobre, em que não sejam necessários milagres que transformem uns poucos pães em alimento para uma multidão, uma sociedade em que todos, conhecendo a ciência, não esperem milagres, mas em que as multidões leiam e façam ciência e poesia. Eu sonho, irrealmente, com uma sociedade cheia de pão, ciência e poesia.

É claro que a realidade não está nem aí para com os meus sonhos. Eu é que tenho que ver, na realidade, como fazer meus sonhos frutificarem, ou pelo menos como fazer algo que aproxime a realidade de meus ideais. E isso não é uma tarefa fácil: o mundo real, especialmente o da política, parece não ter nada de ciência e poesia.

Só que eu sei que há poesia em muitos lugares: por que ela não estaria na política também?

Dos candidatos que se apresentam a presidente, onde está a poesia, onde a chance de uma melhor distribuição de pão, onde o apoio à ciência? Para mim, a resposta é clara: eu voto no partido da borboleta, da estrela, do sonho que é possível.

Pois é, eu, amanhã, vou votar a favor de muita coisa, mas também contra outras coisas, contra o preconceito, contra a "tradição", contra o elitismo, contra o medo, contra quem quer "salvar o Brasil", contra modismos: eu quero mais é voar e permitir que todos, independente da instrução e da renda, voem também, em direção às estrelas e aos sonhos. Pão, paz e sonho para todos, se não hoje, ou amanhã, nalgum dia, a partir das sementes plantadas agora.

Eu não tenho mesmo medo de ser feliz, e queria que todos fossem...

(imagem: meu sangue é vermelho, como algumas regiões do céu, como algumas estrelas, e não azul, pois não há ninguém de sangue azul, tanto como não existem, na natureza, tucanos azuis; em política, tradicionalmente o vermelho é a cor da esquerda e o azul da direita, em ligação com a revolução francesa: havia quem defendia o povo, de sangue vermelho, e havia quem defendia a nobreza, o sangue azul - "Eu estou do lado do bem. E você de que lado está?")

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Vôo noturno


Passando a mão pelo cabelo dela, fechei os olhos e me vi folheando um livro grosso, de folhas finas e translúcidas de papel bíblia, todo escrito em letras pequenas, preto no branco, que tive dificuldade em entender.

Disse isso a ela, e tive uma resposta inesperada: "Você não tem uma caixa de lápis de cores ou um estojo de pincéis e tintas, mas uma caixa de palavras, que sabe usar para fazer desenhos interessantes!"

Fechei os olhos de novo e vi três sóis desenhados em estilo infantil, um abaixo do outro, numa folha de papel sulfite branco e, em seguida, um quadro noturno desenhado em aquarela, com apenas duas cores fortes, um céu azul escuro encobrindo uma árvore com um balanço, ambos em preto, sem nuances ou detalhes, mas onde se via uma criança.

Me senti calmo como nunca e dormi logo, sem sonhos, embalado por imagens, palavras e o calor da presença dela.

(imagem: meu sonho de consumo quando criança; o título desta postagem vem de eum livro de Antoine de Saint-Exupéry, mais conhecido pelo livro "O Pequeno Príncipe", que tem aquarelas maravilhosas...)

O mundo como vontade e representação


As palavras, me lembra um amigo filósofo, são algo além delas mesmas. Quando eu, alfabetizado, leio num texto a palavra "maçã", eu vejo algo que não está lá de fato, um objeto, uma fruta, que não precisa ser igual a nenhuma fruta que exista no mundo real.

Em outras palavras, as palavras são signos que servem para representar coisas maiores que elas, as palavras. Seria o mundo, também ele, um texto, com suas palavras sendo signos que representam coisas?

Quando eu vejo uma maçã, eu estou vendo uma maçã ou apenas lendo no texto do mundo a "palavra" maçã, uma representação de algo maior que o que eu vejo? Será que o meu cérebro foi alfabetizado para ler o mundo do jeito que nós homens o lemos? E se, sendo assim, eu me deparar com outros signos que não fazem parte do alfabeto que eu conheço?

O mundo como representação: a idéia não é minha, nem é nova. O que é meu é a minha vontade de entender as coisas e navegar na realidade além da realidade...

(imagem: uma representação de Schopenhauer, filósofo que escreveu o livro de onde saiu o título desta postagem; eu sei, eu deveria era citar outro filósofo, o fundador da semiótica, mas eu gosto do título do Schopenhauer...)

O homem e seus símbolos


Existem palavras e existem coisas. E as palavras, pelo menos como eu as sinto, podem ser vistas como coisas que usamos para descrever coisas que, às vezes, nem existem mesmo, a não ser como palavras ou como idéias...

Por favor, me desculpem se nada do que eu escrever aqui hoje fizer sentido. Em certos dias eu acordo confuso, e hoje é um dia desses. Acordei com várias palavras na cabeça e, só para exemplificar minha incoerência mental, cito duas delas que vieram à superfície dos meus pensamentos sem o menor motivo: atemóia e Würzburg. Eu sei mais ou menos o que é uma atemóia - algo parecido com uma pinha - e sei também que Würzburg é uma cidade alemã. O que eu não atino é a razão dessas duas palavras me aparecerem assim, de sopetão.

Usando um bocadinho de imaginação, talvez eu até pudesse escrever um ensaio intitulado "A atemóia de Würzburg", aproveitando essa súbita "inspiração". E nesse ensaio eu poderia escrever que em Würzburg há uma residência do principado - um palácio - que foi considerada pela Unesco algo como um dos patrimônios históricos do mundo, lugar onde há uma pintura de um artista barroco - Tiepolo - mostrando o imperador Frederico I (também conhecido como Barbarossa), do Sacro Império Romano, se casando com uma tal de Beatriz de Borgonha, em algum ponto da idade média. Eu poderia falar da atemóia como sendo uma fruta algo barroca, feita do casamento improvável de uma pinha com "uma fruta andina chamada cherimóia" (isso gerou "uma fruta saborosa e doce como a pinha sem alguns de seus inconvenientes: pouca resistência a pragas, baixa durabilidade e muitas sementes"). E daí eu aproveitaria para fazer algum paralelo, entre casamentos e seus frutos, mas isso não responderia à minha pergunta: de onde, dentro de mim, saíram essas palavras?

Não sei. Talvez o caminho seja outro. Eis outras informações que a internet me oferece: uma atemóia é uma fruta que "possui aspecto rústico devido à casca rugosa e pontiaguda, semelhante à da graviola", mas que tem em seu interior "polpa branca e macia". Já sobre a tal da Beatriz de Borgonha  pode-se ler, na wikipedia em inglês, que
"Beatrice was active at the Hohenstaufen court, encouraging literary works and chivalric ideals. She accompanied her husband on his travels and campaigns across his kingdom, and Frederick Barbarossa was known to be under Beatrice's influence."
[Beatriz era ativa na corte de Hohenstaufen, encorajando trabalhos literários e ideais de cavalaria. Ela acompanhou seu marido em suas viagens e campanhas pelo reino, e Barbarossa estava sob sua influência.]
Há também o seguinte poema sobre ela:
Venus did not have this virgin's beauty,
Minerva did not have her brilliant mind
And Juno did not have her wealth.
There never was another except God's mother Mary
And Beatrice is so happy she excels her."
[Vênus não tinha tal beleza virginal,
Minerva não tinha sua mente brilhante
E Juno não tinha sua saúde.
Nunca houve outra assim, exceto Maria, mãe de Deus
E Beatriz é tão feliz que a ultrapassa.]
Bem, talvez inconscientemente, eu tenha visto em algum lugar - onde? - algo sobre Würzburg, e por um instante tenha sentido o desejo de ser imperador do Sacro Império Romano, para me casar com alguém como a rainha Beatriz, mesmo que essa pessoa, por fora, não indique o sabor, a doçura e a polpa branca, e seja improvável e incomum como uma atemóia.

Ou talvez nada disso faça sentido: as palavras "atemóia" e "Würzburg" talvez sejam para mim símbolos de outras coisas que não têm nada a ver com a fruta atemóia e a cidade de Würzburg (símbolos de quê?).

Pois é: a alma tem caminhos que a razão desconhece, e eu, confuso, não conheço a minha, nem os meus caminhos... Por isso escrevo: talvez assim, no meio de um milhão de palavras, eu me desvende e veja a realidade.

(imagem: o quadro de Tiepolo; o título desta postagem vem de uma obra de Jung)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Desvendando o nosso lar


É, eu fui assistir "Nosso Lar". Fiquei sabendo depois que minha mãe adorou. Como eu não sou minha mãe, minha opinião é diferente, bem diferente.

Como cinema, o filme é fraco. Boa fotografia, boa produção, bons efeitos, música legal - e um ritmo modorrento. Ideologia religiosa empurrada com imagens bonitinhas - e só. Aliás, tudo muito bonitinho, especialmente o uso de Beethoven.

Como não sou adepto do espiritismo, assumo que as idéias presentes em "Nosso Lar" saíram da cabeça do sujeito que escreveu o livro (que, aliás, eu li). "Magnetismo" movendo "aerobuses" (será assim o plural da palavra?), montanhas espirituais acima da Terra, ministérios múltiplos, tudo me parece só uma visão utópica ingênua, ingênua... Faltou mostrar no filme o ensino de esperanto, que até onde me lembro era praticado em Nosso Lar, e não serve para nada na Terra.

Supondo que Chico Xavier inventou tudo, de onde ele tirou as idéias? Talvez de uma mistura de cristianismo com ficção científica do século XIX e começo do século XX. Talvez de uma alma romântica e sonhadora, que precisava acreditar num futuro melhor. Talvez de um espírito que o guiava. Sei lá. Só sei que nesse idealismo todo há a necessidade de muros, casas e famílias, o que, para mim, é triste. Se é para ser espírito desencarnado, eu iria tentar ter a liberdade dos lírios do campo, que não tecem nem fiam... E não é preguiça, não. São Francisco de Assis viveu, em carne e osso, sem nada, ou com muito pouco: por que eu, sabendo-me espírito, não iria tentar o mesmo?

E além da falta de desapego às estruturas terrenas, o que mais me incomoda na utopia de Chico Xavier é a falta de estudos: no filme, ninguém aparece estudando nada, a não ser histórias e dramas familiares. O próprio André Luiz é encorajado a estudar na prática, e alguém lhe diz, num arroubo antintelectual, que diplomas - da Terra - não valem nada.

Mas é assim mesmo o espiritismo. Os textos, em geral, não têm uma única expressão matemática. Ciência exata, nada; toda a preocupação é, no máximo, com a medicina. Os espíritos livres do corpo e ninguém se põe a pensar em álgebras e equações, ou na estrutura da natureza do mundo espiritual. Só tagarelices de psicólogos de botequim, ou floreios de filosofias de auto-ajuda, ou poemas e romances...

Talvez seja fácil entender o porque do protagonista ser um médico: na ânsia de apresentar uma visão científica, Chico Xavier escolheu alguém que representasse a única ciência que ele, homem simples do interior do Brasil, devia conhecer ou respeitar - a medicina. Pena: ciência é mais que isso, muito mais, e um cientista de ciência básica teria muito mais a dizer que um médico. Mas Chico Xavier provavelmente pouco sabia de ciência de verdade.  Os espíritas, e sua literatura, em geral, pouco sabem de ciência (é, eu li quase toda a coleção de André Luiz, e muito Kardec, Chico e Divaldo e Zíbia e outras tantas obras do panteão espírita).

A literatura espírita está cheia de jargões pseudocientíficos: fluidos, energias, vibrações, magnetismos, dimensões... Nada além de palavras vazias, que revelam o desconhecimento. Ou o desejo de usar uma roupa mais bonita.

Enfim, eu gosto - gosto mesmo - da idéia de que a vida continua após a morte (de que há uma lei de conservação da consciência, por exemplo), mas ainda não vi quem a apresentasse de forma consistente, em coerência com a ciência contemporânea. O que eu vi, nesse "Nosso Lar" inclusive, foi um festival de doutrinação cristã, com farta distribuição de produtos adocicados e coloridos que agradam pessoas cheias de desejos e esperanças, mas que não sobrevivem a uma análise madura (de que material é feito o mundo espiritual? átomos? campos? matéria escura? neutrinos? WIMPs? não dá para dar nenhuma dica? não tem nenhum relato feito por espíritos que estudam isso?).

Pena.

(imagem: o título desta postagem vem de um livro que vi exposto numa livraria para aproveitar o sucesso do filme; a imagem é de um selo comemorativo dos Correios, com Chico Xavier - ele tinha problemas de visão?)

Nova gramática do português contemporâneo


O mundo é um texto, feito de letras que formam palavras, e palavras que se juntam em frases. Eu, você, o ar entre nós, os átomos de nós todos e de cada coisa, e até mesmo os componentes desses átomos, tudo são letras que se uniram numa narrativa enorme e complicada, que é escrita continuamente, em cada instante.

Todo texto tem um suporte: papel, a tela de um computador, a pele seca de um animal. E entre as letras de um texto há uma ordem, e espaços, pausas. Com o mundo não é diferente.

Pois é isso que eu queria: tocar, no mundo, o que não é palpável, agindo como quem molda nuvens, agindo no espaço que dá suporte ao real, no espaço entre as letras que compõem o texto do mundo, compondo de lá uma canção feita de silêncio e pausas, e que assim mesmo seja impossível de se ignorar.

Eu queria escrever nas entrelinhas, e sem dizer uma palavra diretamente, ser perfeitamente entendido.

Eu queria ser isso, sutil, imaterial e penetrante como a beleza que vejo na moça que eu amo, indescritível como o amor que eu sinto: não uma palavra, mas a ação por detrás e dentro dos verbos.

Eu queria que ela me entendesse assim.

(imagem: Mário de Andrade, um sujeito que escreveu "Amar, verbo intransitivo" que, se não é um bom livro, pelo menos tem um bom título, que parece que não era o original - “O livro se chamava Fräulein de primeiro; mudei o título por causa de errarem a palavra na pronúncia”)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O nascimento de uma nação


Eu tenho uma amiga que está acompanhando uma disciplina de um curso de cinema, sobre a construção de imagens. Ela já viu um bocado de coisas, desde o cinema alemão clássico até o início de Hollywood, e de vez em quando nós conversamos sobre algumas das coisas que ela viu.

Pois eu também tenho dois olhos e por meio deles o mundo me apresenta uma infinidade de imagens...Não é algo como uma escola de cinema, algo que eu nunca frequentei, mas acho que também dá para se divertir e talvez até aprender algo.

Enfim, imagens: é isso que transborda de "A origem", filme com Leonardo DiCaprio, que envolve uma trama complicada e camadas sobre camadas de imagens. Há um virtuosismo nos efeitos visuais do filme que impressiona quando misturado com as sutilezas do enredo, mas no fundo, debaixo disso tudo, a idéia central do filme é brincar com a mesma questão que se brincava em "Matrix": o que é a realidade? Ou seja, "A origem" é um sub-"Matrix", com desnecessárias perseguições, lutas em paredes e tiroteios, tão típicos do cinemão americano.

Só para comparar, há mais de um episódio de "Jornada nas estrelas: a nova geração" em que um dos personagens entra no mundo onírico (ou subconsciente) de outro, e nesses casos os roteiristas, provavelmente por restrições orçamentárias, não usaram perseguições e edições espertas, mas imagens simbólicas mais simples e nem por isso tão menos eficientes. E há, é claro, "O conto do sábio chinês", de Raul Seixas, direto lá do começo dos anos 80...





Imagens de uma coisa para se mostrar outra é o que há em "Distrito 9", um filme de ficção científica que é uma alegoria:
"Uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico (vide: retórica), que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal. Diz b para significar a. Uma alegoria não precisa ser expressa no texto escrito: pode dirigir-se aos olhos e, com freqüência, encontra-se na pintura, escultura ou noutras formas de linguagem."
Do que fala "Distrito 9"? Não precisa muita genialidade para se perceber que um filme cuja história se passa na África do Sul, mostrando uma favela para refugiados alienígenas não é exatamente um filme de ficção científica. De qualquer forma, eu gostei bem mais de "Alien Nation", com James Caan (em português, "Missão Alien"), que era menos pretensioso e com menos (bem menos) recursos visuais. Na minha modesta opinião, "Distrito 9" é fraquinho, passável mas fraquinho.

Imagens inúteis, sem rumo, é o que se vê em "O dia final", péssimo filme de ficção científica e terror, que é uma refilmagem de um filme inglês da década de 60 ("The day of the triffids", no original). O criativo roteiro desse filme resume-se a uma história passada num futuro não muito distante, em que há plantas carnívoras que andam, criadas e mantidas em cativeiro pelos seres humanos, e que se libertam para destruir a humanidade, logo depois de uma tempestade solar que cega a maior parte das pessoas. Eu não consegui ver nem metade, mas na parte inicial pensei que se tratava de um sub-"Ensaio sobre a cegueira". Que nada! Era mesmo só mais um filme B do século XXI, isto é, um filme B sem a criatividade ou o charme dos filmes B originais.

Por fim, imagens algo kitsch e ensossas é o que se encontra em "Engel e Joe", filme alemão de adolescentes, feito em 2001 provavelmente para adolescentes, e aparentemente escrito pelo mesmo roteirista de "Christiane F.", filme polêmico da década de 80. É uma historinha de amor, "inha" mesmo, que me lembrou um pouco "Kids", de 1995, sem a AIDS. Numa citação do imdb:
"Kids is basically a movie that warns you what the hell could be happening to your very own child."
Tá bom, um pouco interessante, mas... Depois de ver esse filme, eu recomendo a leitura de "O senhor das moscas", e como história de amor entre adolescentes, "Romeu e Julieta": certamente dá para aproveitar mais.

Para terminar, acho que hoje, no seu curso de cinema, minha amiga vai assistir "O nascimento de uma nação", de D. W. Griffith, de 1915, um clássico do cinema que fala da Guerra Civil americana, enquanto eu, bem, eu devo assistir "Nosso lar", um clássico da literatura espírita, de 1944, que eu vejo como uma obra de ficção científica. Se isso quer dizer algo, deve ser sobre a imagem que projetamos no mundo...








(imagem: definição de imagem numa imagem da wikipedia...)

sábado, 28 de agosto de 2010

Tinha que ser você


Vi hoje na TV, enquanto cuidava de meus filhos, um filme simples - "bonitinho" acho que é um termo apropriado - que me tocou por uma ou duas razões. Primeiro, eu estou pensando em viajar para Londres; segundo, eu gosto de Emma Thompson...

O filme era "Last Chance Harvey", e nele se conta o início de um romance entre dois "perdidos". Os diálogos entre eles são bem escritos, e neles aparece a seguinte fala, feita pela personagem de Emma Thompson, chorando à beira do Tâmisa:
"I think I'm more comfortable with being disappointed. I think I'm angry at you for trying to take that away."
[Eu acho que me sinto mais confortável estando decepcionada. Acho que estou com raiva de você por tentar tirar isso de mim.]
Concordo: é mais fácil viver não esperando nada dos outros. É mais fácil viver achando que o universo não tem nada de bom a oferecer; é mais seguro. Mas eu não quero viver na zona de segurança para sempre. As pedras é que são confortavelmente estáveis por muito tempo e eu, por outro lado, quero ser nuvem, e cruzar os céus sem rumo, nem que seja por um breve momento...

(imagem: Romeu e Julieta, em pintura do século XIX; contra esse tipo de amor e romantismo, eis outra fala do filme, bem feminina: "I'm not gonna do it, because it'll hurt! Sometime or other there'll be, you know "It's not working." or "I need my space." or whatever it is and it will end and it will hurt, and I won't do it." [Eu não vou entrar nisso, porque vai doer! Uma hora ou outra vai ser, você sabe "Não está funcionando." ou "Eu preciso do meu espaço." ou seja o que for e isso vai acabar e vai doer, e eu não vou entrar nisso.])

domingo, 8 de agosto de 2010

Em terra de cegos


Foi por meio de um site chamado "Trabalho Sujo" que encontrei "A experiência religiosa de Philip K. Dick", escrita por Robert Crumb, onde pude ler, lá na oitava página:
"Não há nada pior no mundo, nenhum castigo maior do que conhecer Deus e deixar de conhecê-lo..."
Tendo a concordar: tendo visto Deus recentemente, morro de medo de perdê-lo de vista. No entanto, também é bastante ruim ouvir todo dia outras pessoas dizendo que o que eu vi - e vejo - é uma ilusão: minha vontade, hoje, é não ouvi-las mais, nem que para isso eu tenha que morrer.

(imagem: "A garota cega", de John Everett Millais, século XIX, lembrando que cegos não podem ver um arco-íris, e eu já vi dois ao mesmo tempo... O título desta postagem vem de um conto magnífico de H. G. Wells.)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

God only knows

Uns tempos atrás, aproveitando uma promoção, comprei alguns CDs que esqueci no fundo de meu armário. Hoje, cansado de ouvir as mesmas musicas de sempre, abri um desses CDs - "Pet Sounds", do grupo americano Beach Boys - e para minha surpresa encontrei "God only knows"...
"I may not always love you
But long as there are stars above you
You never need to doubt it
I'll make you so sure about it

God only knows what I'd be without you

If you should ever leave me
Though life would still go on believe me
The world could show nothing to me
So what good would living do me

God only knows what I'd be without you
God only knows what I'd be without you

If you should ever leave me
Well life would still go on believe me
The world could show nothing to me
So what good would living do me

God only knows what I'd be without you"

[Eu posso não te amar sempre
Mas enquanto houver estrelas sobre você
Você nunca vai precisar duvidar
Eu vou fazer você ter muita certeza disso

Só Deus sabe o que eu seria sem você

Se você me deixasse
Embora a vida ainda continuasse, acredite-me
O mundo não poderia mostrar nada para mim
Então que bem viver me faria?

Só Deus sabe o que eu seria sem você
Só Deus sabe o que eu seria sem você

Se você me deixasse
Bem, a vida ainda continuaria, acredite-me
O mundo não poderia mostrar nada para mim
Então que bem viver me faria?

Só Deus sabe o que eu seria sem você]
E foi também hoje que descobri que o "Pet Sounds" está numa lista, publicada agora em julho, dos 50 álbuns que construíram o rock progressivo.


Moral da história: por um desses mistérios do universo, hoje eu pude cantarolar, por acaso, exatamente o que eu sentia...

Pigs on the wing

"If you didn't care what happened to me,
And I didn't care for you,
We would zig zag our way through the boredom and pain,
Ocasionally glancing up through the rain,
Wondering which of the buggers to blame
And watching for pigs on the wing.

You know that I care what happens to you,
And I know that you care for me too,
So I don't feel alone, or the weight of the stone
Now that I've found somewhere safe to bury my bone.
And any fool knows that a dog needs a home,
A shelter from pigs on the wing."

[Se você não importasse com o que aconteceu comigo,
E eu não me importasse com você,
Nós ziguezaguearíamos nosso caminho através do tédio e da dor,
Ocasionalmente olhando para cima através da chuva,
Querendo saber qual dos vagabundos culpar
E observando porcos que voam.

Você sabe que eu ligo para o que acontece com você,
E eu sei que você se importa comigo também,
Então eu não sinto a solidão, ou o peso da pedra,
Agora que eu encontrei um lugar seguro para enterrar o meu osso.
E qualquer idiota sabe que um cão precisa de um lar,
Um refúgio contra porcos que voam.]

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Poema de sete faces


Meu amor é uma taça de cristal, fina e delicada, que vibra e canta quando tocada com a ponta dos dedos.

Meu amor é uma fruta doce, macia e saborosa, que se deixa cortar com uma faca quase sem fio.

Meu amor é uma teia, feita de mil fios que aprisionam delicadamente as gotas de chuva.

Meu amor é um nada, que substitui com seu calor o nada dos espaços frios que o universo me apresenta.

Meu amor tem sete letras e nome, cor, sabor, textura e cheiro que são só dele.

Meu amor é um unicórnio branco de olhos verdes e crina negra, caminhando num jardim florido.

Meu amor não cabe em lugar algum, e enche os meus olhos e minha alma, até que eu transbordo, e descanso, repleto de lágrimas e letras.

(imagem: um universo preenchido por heptágonos - segundo a wikipedia, "o heptágono regular é o menor polígono regular que não pode ser construído com régua e compasso"; o título desta postagem vem de um poema de Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O segredo de Beethoven

Meus olhos, doentes e vazios, são quase sempre tudo que me resta, tudo que sou. Com eles, às vezes, eu saio a pescar e pego algo, que mostro a quem passa por aqui.

Hoje, na minha rede veio um filme, um musical cheio de dramas humanos, e que fracassou nas bilheterias. Pena: "Dinheiro do céu" chega a ser tocante.
"If you want the things you love
You must have showers.
So when you hear it thunder
Don't run under a tree
There'll be pennies from heaven for you and me."

No fim de semana, o que encontrei foi Beethoven.
"The vibrations on the air are the breath of God speaking to man's soul. Music is the language of God. We musicians are as close to God as man can be. We hear his voice, we read his lips, we give birth to the children of God, who sing his praise. That's what musicians are." 
[As vibrações no ar são o sopro de Deus falando à alma do homem. A música é a linguagem de Deus. Nós músicos estamos tão perto de Deus quanto o homem pode estar. Nós ouvimos a sua voz, lemos os seus lábios, que dão à luz aos filhos de Deus, que cantam seus louvores. Isso é o que os músicos são.]
"O segredo de Beethoven" é um filme que ilustra o possível papel que um ser humano pode ter na vida de outro, tudo emoldurado por locações muito belas e músicas que dispensam comentários.


Mas no fundo, no fundo, eu nem queria mesmo ter visto esses filmes. Tudo que eu queria ver eram outros olhos em frente aos meus, olhos tocantes, belos e que dispensam comentários, e sobre os quais eu gostaria de falar aqui, mas que ainda não fui capaz de capturar - só posso imaginá-los, belos e musicais, falando de Deus à minha alma, me aproximando de Deus tanto quanto é possível...

Moving waves


Há deslizes que parecem imperdoáveis, por serem de proporções monumentais. Os famosos "atos falhos", por exemplo, podem se encaixar nessa categoria:
"Um ato falho, ou tecnicamente parapraxis, é um erro na fala, na memória, ou numa ação física que é interpretado como ocorrendo devido à interferência de algum desejo, conflito ou linha de pensamento inconsciente ("dinamicamente reprimido", muitas vezes sexual)."
O que me incomoda nessa frase é a palavra "interpretado": nem tudo precisa ou pode ser interpretado (e, bem, eu não concordo que tudo tenha fundo sexual). Só que a maioria das pessoas - eu, inclusive - quer ver significados em tudo, e assim é fácil esquecer que muitas vezes, um charuto é só um charuto. Sorte que alguém na wikipedia lembrou disso:
"Em contraste com Freud e seus seguidores, os psicólogos cognitivos afirmam que deslizes linguísticos podem representar um conflito de seqüenciamento na produção da gramática. A partir dessa perspectiva, deslizes podem ser devidos a subespecificações cognitivas que podem assumir uma variedade de formas - desatenção, dados sensoriais incompletos ou conhecimentos
insuficientes. Em segundo lugar, podem ser devidos à existência de algum padrão de resposta adequado a nível local que é fortemente condicionado pelo seu uso anterior, ativação recente ou alteração emocional ou pelas condições de chamada da situação (...). Em outras palavras, [nesses casos] os erros foram devido à substituição de hábitos fortes."
Eu tenho um milhão de hábitos, alguns bem antigos, já que sou um cachorro velho, que demora a aprender truques novos. E um que eu já devia ter aprendido há bastante tempo é o de ter muito cuidado com coisas delicadas.

Eu escrevo tudo isso porque ontem eu, por conta de "hábitos fortes", quebrei um diamante, e hoje sinto ainda os cacos dele na minha mão, debaixo das minhas unhas, piores que farpas de madeira. O pior de tudo é sentir não haver o que fazer: parece que não há cirurgião que retire esses pedaços da minha carne e, especialmente, parece não existir cola ou técnica que remonte o que eu quebrei.

Eu me sinto como Orfeu, que foi até o inferno resgatar a quem ele amava, e que já na saída com ela cometeu o único erro que ele não podia cometer...

(imagem: Orfeu; o título desta postagem vem de um álbum do grupo de rock progressivo Focus, que tem uma música de dezesseis partes chamada "Eruption", sendo que uma delas é "Orfeus")

terça-feira, 13 de julho de 2010

Papillon


Trecho de um texto do colunista João Pereira Coutinho, publicado na Folha de São Paulo de hoje:
""Brilho de Uma Paixão" começa por oferecer essa gramática; uma gramática sobre "a santidade dos afetos do coração", como afirma Keats, e nós vamos acompanhando a evolução desses afetos, apresentados na sua forma mais bela, despojada, dir-se-ia até pueril.  
Fanny conhece Keats de forma casual, sem os heroísmos habituais dos filmes de época; em seguida, procura conhecer os seus poemas. Compra e lê "Endymion", o poema que a crítica, sempre inteligente, ridicularizou a golpes de maldade. E quando o reencontra dias depois, diz-lhe com uma honestidade tocante: "Não estou certa de ter gostado de "Endymion", mas o começo é algo de perfeito. Não conheço palavras mais sábias e premonitórias".  
É o princípio de uma história de amor, embora "amor" seja termo assustador e ambíguo para o assustadiço e ambíguo Keats. Mas ele cede. E cede porque sabe: três dias de paixão são mais valiosos do que 50 anos de banalidade, escreve ele numa missiva. Mesmo que os dias sejam fugazes e, como na vida das borboletas, mortais."
Uma amiga me disse que os alemães têm uma expressão, "Schmetterlinge im Bauch", que fala do frisson causado pelo amor: quem ama sente "borboletas na barriga". Isso é assustador, mas ter borboletas na barriga significa também temer que elas morram cedo demais: três dias de paixão são mais valiosos do que 50 anos de banalidade, mas o problema é ter que viver 50 anos banais depois de viver três dias verdadeiros.

Quanto a mim, não, não sou Keats, mas anseio pela minha Fanny: eu morreria em paz depois de viver ao lado dela...

(imagem: Der Schmetterlingsjäger, do alemão Carl Spitzweg, século XIX)

domingo, 11 de julho de 2010

Admirável mundo novo



Flanando pela Paulista nesse domingo, ao lado de um amigo, vimos um garoto andando de skate. Até aí nada demais, exceto pelo fato do rapaz ter uma prótese no lugar de uma das pernas. Meu amigo, espantado, disse algo do tipo "como é maravilhosa a tecnologia de hoje", e daí nossa conversa enveredou por esse rumo: celulares, internet, etc.

Eu não posso mesmo discordar do maravilhamento de meu amigo: comigo em casa, sozinho, de frente a este meu netbook de segunda mão conectado a uma rede sem fio, viajo sem sair do lugar, e mesmo não sendo o mesmo que estar onde eu queria, longe daqui, rápido consigo esquecer, por um bom tempo, que nestes dias falta algo em minha vida...

(imagem: cartão postal francês de 1910, "antecipando"o Skype; eu troco postais usando um site da internet - coisa de maluco, mas aceito que eu sou mesmo meio estranho)

sábado, 10 de julho de 2010

I'm free

Frase interessante que achei rolando na internet:
"Go to work, send your kids to school, follow fashion, act normal, walk on the pavement, watch T.V., save for your old age, obey the law. Repeat after me: I am free."

[Vá trabalhar, mande seus filhos para a escola, siga a moda, aja normalmente, ande na calçada, veja TV, economize para sua velhice, obedeça à lei. Repita comigo: eu sou livre.]
Pois bem: repita comigo...



Einstein's telescope


O que não se faz por amor? Quantas loucuras, bobagens e atos sublimes o amor inspira...

Mas, é claro, há também o outro lado, algo esquecido, que é o das loucuras, bobagens e atos sublimes que são feitos quando não se tem alguém por perto para amar. Eu, por exemplo, sozinho estes dias e em férias, me senti totalmente sem saber o que fazer de mim. Então, por pura falta do que fazer, me peguei pensando em fundamentos da física...

Alunos do ensino médio já devem ter ouvido falar de Isaac Newton, cientista inglês do século XVII, e das três leis do movimento formuladas por ele. O que, em geral, os alunos não ouvem são comentários sobre o que significam as leis de Newton.

É fácil e intuitivo entender que os corpos, de uma forma geral, tendem a permanecer como estão, ou seja, se algo está parado esse algo tende a permanecer parado se ninguém mexer com ele. A grande "sacada" de Newton foi perceber que se um corpo estiver em movimento ele também vai tender a continuar em movimento - isso não é intuitivo, pois, no mundo em que vivemos, as coisas não ficam se movendo para sempre: em geral, elas param. O que Newton percebeu foi que mesmo para fazer o movimento de um corpo acabar é preciso mexer com o corpo, interagir com ele, e a natureza costuma fazer isso, através do atrito, por exemplo. Assim, do mesmo modo que para tirar um corpo do repouso é preciso agir sobre ele, para parar um corpo, ou diminuir sua velocidade, também é preciso agir sobre ele. Essa é a lei da inércia.

Bem, Newton percebeu, assim, que, quando se interage com um corpo, pode-se alterar não só sua posição, mas principalmente sua velocidade. A velocidade é que importa, junto com a massa do corpo: corpos mais massivos são mais difíceis de parar ou mover que corpos leves. Da união dessas duas idéias é que sai a noção de quantidade de movimento, que é uma quantidade construída pelo produto da massa e da velocidade de um corpo.

O próximo passo natural é pensar no que pode alterar a quantidade de movimento: Newton pensou que para haver alteração da quantidade de movimento deve haver algo chamado força agindo no corpo. Ou seja, o conceito de força é algo que Newton "inventou" - ou definiu - como sendo qualquer coisa que causa mudança na quantidade de movimento. Como normalmente a massa de um corpo não muda, é mais comum que a quantidade de movimento se altere por uma alteração na velocidade do corpo, e uma alteração de velocidade é conhecida como aceleração.  Logo, a segunda lei de Newton é geralmente conhecida como dizendo apenas "força é igual a massa vezes aceleração".

A aceleração, entretanto, é mais que uma mudança da velocidade. A velocidade pode ser definida como mudança de posição: se algo se move, esse algo tem alguma velocidade. Mesmo algo que não se move tem velocidade, só que nesse caso ela é zero. Assim, a aceleração é uma mudança "dobrada" da posição - em termos matemáticos, a aceleração é a segunda derivada da posição.  Ou seja, uma força é algo que, em geral, está ligado a uma segunda derivada da posição.

É importante lembrar que a velocidade pode mudar em quantidade e em direção. Se você estava indo para a frente a 60 por hora, e de repente, faz ma curva para algum lado, ainda a 60 por hora, você alterou sua velocidade, e sofreu uma aceleração. Ou seja, há uma força envolvida também em mudanças de direção.

Os planetas do sistema solar, como a Terra, se movem ao redor do Sol, em trajetórias curvas. Portanto, os planetas estão constantemente se movendo e mudando de direção, voltando ao ponto de onde saíram depois de um "ano" (depois de uma órbita completa ao redor do Sol), mas se movendo sempre, com uma certa aceleração. A força ligada a essa aceleração é a gravidade.

A relatividade geral, criada pelo alemão Albert Einstein no início do século XX, muda um pouco essa descrição da gravidade. O que Einstein notou é que não é a segunda derivada da posição (ou seja, a aceleração) que é importante para uma descrição da gravidade, mas sim a segunda derivada de uma outra quantidade, ligada à geometria.

A posição de um corpo num determinado local tem que ser medida a partir de um ponto de referência, chamado de origem, e essa medida pode ser escrita como "tantos metros de distância da origem na direção tal". A distância entre dois corpos independe da minha escolha de origem ou da direção em que eles estão da origem: essa distância só depende da posição relativa dos dois corpos. Pois bem, a distância entre dois corpos depende de uma quantidade geométrica chamada de métrica, que indica como é o espaço entre os dois corpos: se o espaço entre eles é curvo, como é a superfície da Terra, a métrica é uma, ao passo que se o espaço entre eles é plano, como numa folha de papel, a métrica é outra.

O que Einstein entendeu é que a gravidade está ligada à segunda derivada da métrica, e não da posição, e que essa ligação não é simples como é a ligação entre a força e a aceleração. No fundo, isso significa que a gravidade está ligada com a geometria do espaço e do tempo. Em outras palavras, a gravidade está ligada com a curvatura do espaço-tempo e, nesse sentido, não é uma força como as outras: esse é o espírito da relatividade geral.

Embora a descrição da gravidade feita por Einstein explique muita coisa, especialmente na região do sistema solar (a órbita de Mercúrio, por exemplo, só é explicada adequadamente quando se usa a gravidade de Einstein), ela parece falhar quando se trata de explicar o movimento das estrelas na periferia das galáxias, por exemplo. Para que ela funcione a contento nessa região, é preciso supor que exista uma quantidade de matéria lá que não é visível, a não ser por sua aparente influência no movimento das estrelas - é a assim chamada matéria escura.

O que eu me peguei pensando estes dias é que isso pode ser só um truque da nossa visão de mundo. Não parece haver matéria escura no sistema solar (ela não é necessária para explicar o movimento dos nossos planetas vizinhos), mas talvez haja tanta matéria escura aqui como em qualquer outro lugar, em média, e essa quantidade pode ser nenhuma. O que pode estar acontecendo é que a relatividade geral - ou outras teorias "alternativas" da gravidade - pode não estar considerando adequadamente o status do observador.

E o que eu quero dizer com status do observador? Vou fazer uma analogia com o magnetismo: para haver um campo magnético é preciso haver elétrons se movendo. O magnetismo é um "resíduo" da movimentação dos elétrons. Alguém montado num elétron poderia, ao menos em princípio, ter dificuldade em perceber que esse seu elétron se move, do mesmo modo que nós, humanos, tivemos, por séculos, dificuldades em perceber que a Terra se movia, e assim poderia ter dificuldades para conhecer a força magnética e associá-la aos elétrons em movimento. Mas se esse alguém olhasse para outros sistemas de elétrons em movimento poderia perceber que algo diferente acontece lá, e seria talvez tentado a postular a existência de elétrons não visíveis lá longe.

O que eu quero dizer, portanto, é que pode ser que a nossa movimentação no sistema solar não permita percebermos a força da gravidade como ela é, ao nosso redor, assim como um hipotético observador montado num elétron não perceberia de imediato o magnetismo acontecendo ao seu redor causado pela movimentação desse elétron. Confuso?

Bem, bem, são apenas especulações de uma mente solitária, só isso e nada mais: não faço a menor idéia de como expressar isso matematicamente, ou se o que eu escrevi acima faz sentido logicamente. Estou sozinho e faz frio nesta cidade de milhões de almas: só me resta achar como passar o tempo...

(imagem: curvatura do espaço por um aglomerado de matéria, causando o que se chama de uma lente gravitacional, que pode ser percebida pela existência de uma orientação circular na imagem; o título desta postagem - numa tradução livre, "O telescópio de Einstein" - vem de um livro sobre a busca pelo "lado escuro" do universo que comprei recentemente e não consigo terminar de ler, já que está bastante frio e eu só quero dormir...)

domingo, 4 de julho de 2010

Mulheres alteradas


Trechos de entrevista dada pela quadrinista argentina Maitena, autora de uma série de quadrinhos intitulada "Mulheres alteradas":
O que faz as mulheres ficarem alteradas no século 21? Filhos, casa, trabalho, corpo, amor?
Maitena: A alteração das mulheres vem exatamente da soma de todas essas coisas. Se fosse só uma delas, levaríamos na boa. O problema é que queremos fazer muitas coisas ao mesmo tempo. E isso não dá, ou dá, mas a um custo muito alto. Mas o que mais nos preocupa é o tema afetivo. Mesmo que estejamos cada vez mais independentes e realizadas, isso não muda. Para as mulheres, é o amor que nos faz sentir vivas.
Ser uma mulher alterada é bom ou mau? E o que os homens pensam disso?
Maitena: Eu acho que estar um pouco alterada é bom, é saudável. Nos tratam como loucas porque somos extrovertidas e mais expressivas, rimos, choramos, gritamos e ficamos enjoadas (às vezes, tudo junto, ao mesmo tempo). Com facilidade, colocamos tudo pra fora. Então, passamos a imagem de maior desequilíbrio que os homens, que são mais contidos, mas também têm úlcera, acidez, bebem até cair. Nós, mulheres, nos alteramos, eles se estressam.
O que mais me estressa não é querer tudo ao mesmo tempo, ou me conter o tempo todo - é não saber conviver com as mulheres...

(imagem: reprodução de pintura de Ingres, que tenho em casa - a pintura retrata uma mulher jovem, adolescente, como fonte... de quê? Respostas nos comentários, por favor...)

sábado, 3 de julho de 2010

And you and I


"And you and I climb, crossing the shapes of the morning.
And you and I reach over the sun for the river.
And you and I climb, clearer, towards the movement.
And you and I called over valleys of endless seas."

Só a idéia (ou a imagem) de vales de mares sem-fim me deixa doente de saudade dos vales onde eu queria estar, que são de amores sem-fim...

Cemetry gates


Há vezes, na vida, em que a gente se sente perdido, como um cachorro que caiu de um caminhão de um mudança... Hoje, estou assim: meu coração está noutra parte, e não neste mundo em que sou obrigado a vagar.

Vagando, fui almoçar numa padaria perto de casa, onde há várias revistas à disposição dos clientes que aguardam os seus pedidos. Em meio a revistas sobre carros e dicas de saúde e beleza, encontrei uma "Veja", que nunca leio ou compro, por discordar - muito - de sua linha editorial, e fui folheando até achar, na resenha de um filme envolvendo uma parte da vida do poeta inglês Keats, um parágrafo que me agradou demais. Sem caneta à disposição, fotografei a revista com meu celular, que tem uma câmera de baixa resolução e, agora, o que consigo ler nas duas fotos que tirei é isso:
"Brilho de uma paixão é suntuosamente fotografado e muito embevecido com a beleza de suas casas, jardins e figurinos (sem falar na beleza limpa e fresca de sua atriz, uma espécie de versão alimentada a leite integral da também australiana Nicole Kidman). Para o espectador distraído, pode assim passar como mais uma história "de mulherzinha" sobre uma paixão impossível e de fim trágico. Quando Keats morreu de tuberculose longe dela, na Itália, aos 25 anos, Fanny se entregou a paroxismos de sofrimento, o que poderia ser visto como confirmação dessa hipótese. Mas, prestando-se atenção ao desenvolvimento perspicaz que Jane Campion dá ao romance, entende-se o que Fanny de fato perdeu: não só seu primeiro amor, como a possibilidade de uma conexão verdadeira e sem reservas. O que não é só muito - é quase tudo."
"Uma conexão verdadeira e sem reservas" é quase tudo que eu acreditava ser impossível existir entre seres humanos. Romântico e idealista, eu já quis escrever coisas como as que o ultra-romântico Keats escreveu:
"My love has made me selfish. I cannot exist without you — I am forgetful of every thing but seeing you again — my Life seems to stop there — I see no further. You have absorb'd me. I have a sensation at the present moment as though I was dissolving — I should be exquisitely miserable without the hope of soon seeing you. [...] I have been astonished that Men could die Martyrs for religion — I have shudder'd at it — I shudder no more — I could be martyr'd for my Religion — Love is my religion — I could die for that — I could die for you. [Meu amor me fez egoísta. Eu não posso existir sem você - estou esquecido de tudo exceto de vê-la novamente - a minha vida parece parar aí - eu não vejo além. Você tem me absorvido. Tenho uma sensação no momento presente de que é como se eu estivesse me dissolvendo - Eu seria intensamente miserável sem a esperança de vê-la em breve. [...] Me surpreendia que homens pudessem morrer mártires da religião - isso me arrepiava - não me arrepio mais - eu poderia ser martirizado por minha religião - minha religião é o amor - eu poderia morrer por isso - eu poderia morrer por você.]"
Mas, olhando para mim e o meu entorno, em meu passado, quando eu era moço, nunca vi para quem endereçar devaneios desse tipo. E hoje, com a velhice se anunciando nas minhas juntas, o que me restou foi almoçar um prato feito de padaria, enquanto a TV mostrava a Espanha enfrentando o Paraguai...

Se Deus permitir, aceito uma outra sugestão de outra revista "Veja" da padaria e, ao invés de ficar aqui, vou até Santos ("a bola da vez") num fim de semana desses. Lá, posso até não encontrar o que eu queria, mas há a Bolsa do Café, e, como sempre, o mar onde, quem sabe, posso afogar meus olhos à vontade.

(imagem: Keats, num retrato que está num belo museu de Londres; preciso voltar lá um dia desses... O título desta postagem vem de uma música dos Smiths: "So we go inside and we gravely read the stones / All those people all those lives / Where are they now? / With the loves and hates / And passions just like mine / They were born / And then they lived and then they died / Seems so unfair / And I want to cry")

terça-feira, 22 de junho de 2010

O banquete


Lendo um livro intitulado "Os 10 mais belos experimentos científicos", encontrei logo de cara, na introdução, trechos que eu achei que não podia deixar de citar (achei também erros bem feios - o termo "neutral currents", ou seja, correntes neutras, aparece como "correntes neutrais" e, logo após, como "correntes neurais"):
"[Para Faraday] beleza significa "não aquela que parece mais bela, mas aquela que age de forma mais bela". A seus olhos, uma vela é bela porque funciona de forma elegante e eficiente em decorrência de várias leis universais.

(...)

Às vezes desconhecemos nossas expectativas até que elas sejam atendidas, mas um objeto belo traz com ele uma feliz realização: "Era isso o que eu queria!" O fato de os experimentos possuírem essas propriedades sugere que eles podem ser chamados de "belos" - e não apenas de forma metafórica, ampliando o sentido literal do termo, mas na forma legítima e tradicional da palavra."
A busca pela beleza desse tipo é o que deveria mover o mundo e a ciência. Eu afirmo isso, claro, puxando a sardinha para minha brasa: o que me move, creio, é uma curiosidade fundamentalmente ligada à busca por essa beleza elegante, eficiente e repleta de significância. Tal pensamento não é novo; já o encontrei expresso pelo francês Henri Poincaré:
"O cientista não estuda a natureza porque isso é útil; ele a estuda porque se deleita com isso, e se deleita porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena conhecê-la, e se a natureza não merecesse ser conhecida, a vida não valeria a pena ser vivida."
Beleza, beleza, beleza - pois é: este é o assunto que mais me assombra...

(imagem: pintura de Modigliani, presente em um livro chamado "Modigliani: a poesia do olhar", onde pode-se ler que "com esta série de nus, que pintou num curto período de tempo, Modigliani erigiu um segundo templo de beleza, já que estas telas exprimem a mesma arrebatada sublimidade das suas esculturas; a sua beleza idealizada passa pela mesma transfiguração poética"; o título desta postagem vem de um discurso de Platão que fala do amor e, é claro, da beleza...)

A tempestade


No final de semana descobri uma locadora de vídeos com um acervo que vai muito além do trivial. Arrisquei uma versão cinematográfica de uma peça de Shakespeare, "Prospero's books", dirigida por Peter Greenaway (em português, o título é "A última tempestade"). O ponto mais conhecido da peça é a fala
"We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep."

[Nós somos feitos
da mesma substância que os sonhos, e nossa pequena vida
é cercada por um sono.]
Já o filme é um delírio visual. Com um monte de gente nua ou semi-nua e imagens barrocas, cheias de panos e rendas, me lembrou circo, peças do José Celso Martinez Corrêa, Fellini, e sei-lá-mais-o-quê. Assisti no cinema, recentemente, um filme dinamarquês, "Italiano para principiantes", de uma cineasta ligada ao movimento Dogma e, assim, acho adequado dizer que este Shakespeare que eu vi é um filme totalmente anti-Dogma...

Minha vida, ultimamente, tem sido quase isso: a escolha entre extremos. Ou um confortável filme de temática pequeno-burguesa, adequado para as multidões, ou uma sofisticada - talvez até mesmo barroca e extravagante - peça de teatro de "vanguarda", que agrada a poucos. Não que eu goste de ou saiba estar na vanguarda mesmo (e eu não quero ser burguês ou elitista), mas cansei dos clichês típicos de Hollywood e das situações esquematizáveis da literatura e da dramaturgia convencionais (que seriam 36, segundo uma classificação que se encontra por aí): minha praia é outra.

Só não sei se dá para fugir disso, da convencionalidade e do mediano, o tempo todo, e se fugir disso significa mesmo ter que ir para o outro lado, o dos que "ousam" demais  - como eu não sou José Celso Martinez, eu preferia achar um meio-termo (que espero ter encontrado), mas não sei se o mundo permite esse tipo de acordo...

(imagem: Miranda, único personagem feminino da peça de Shakespeare, em pintura do início do século XX, sobre quem o personagem Ferdinando fala, na primeira cena do terceiro ato, "Admirável Miranda! Sim, remate de toda perfeição, digna de quanto no mundo há de mais raro. A numerosas damas já dirigi olhares ternos, por vezes tendo-me ficado presos os atentos ouvidos na harmonia de seu doce falar. Dotes variados me fizeram gostar de outras mulheres, sem, contudo, empenhar nisso a alma toda, porque sempre se opunha algum defeito às suas qualidades mais sublimes, para o valor manchar-lhes. Vós, no entanto, ah! tão perfeita e incomparável, fostes feita de tudo o que de mais custoso pode haver na criação.")

terça-feira, 15 de junho de 2010

Perception

Recebi ontem uma mensagem me avisando de que haverá um seminário na universidade intitulado "The effects of sex hormones on cognition". Fiquei impressionado: há diferenças de gênero na percepção do universo?

Sendo homem, eu confesso: eu sempre tive curiosidade em saber como seria ser uma mulher (sem piadinhas, por favor). Há algo de intrinsecamente diferente entre as almas feminina e masculina, ou é só uma questão de focos distintos, desentendimentos, erros de interpretação e uso de linguagens diferentes?

Tenho inveja de Tirésias - personagem masculino da mitologia grega que foi mulher por um tempo - e de Orlando - personagem de Virginia Woolf  que um dia acorda mulher... Se der, volto noutra vida mudado, só para saber como é.

Mas não é só isso: ultimamente, por conta de discussões linguísticas (tenho tido contato com um pouquinho, muito pouquinho mesmo, de alemão), eu fiquei pensando se faz sentido dividir o mundo em entidades masculinas e femininas. Sabe como é: os alemães falam "Der Mond" que, traduzido ao pé da letra, seria  "O Lua", enquanto os franceses falam "la mer", que seria "a mar". O que faz o mar e a lua serem masculinos ou femininos?

Minha dúvida atual é até pior que essa: há ciências, disciplinas e teorias masculinas e femininas? A física, por exemplo, parece ser uma disciplina masculina por excelência, mas relatividade geral e mecânica quântica eu apostaria que são de gêneros opostos... Já discuti o assunto com alguns colegas e não consigo chegar a um acordo. Com tempo, se der, vou anotar os argumentos neste blog.

Por ora, deixo como "frase de encerramento" um vídeo que mostra uma ilusão cognitiva: o cérebro humano, complexo como ele só, é muito facilmente enganado...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

The boney king of nowhere

Ontem fui a uma mesa redonda em que dois filósofos da ciência falaram sobre suas idéias e experiências pessoais. Um deles me assombrou, ao se dirigir aos alunos, dizendo que "a felicidade está fora da academia, nos amigos, na família".

Acho que não entendo nada de felicidade, nem de amigos ou de família. Hoje, não sei se conheço tais coisas. No frio desta manhã, parece que só existe a solidão, me envolvendo como um oceano, desde sempre, para sempre.

Há cerca de um ano fui a um show do Radiohead sozinho. Foi provavelmente o melhor espetáculo musical que eu já assisti, mas faltou algo: alguém do meu lado (e eu estava esmagado no meio de uma multidão). E hoje pela manhã, ao estacionar o carro no pátio do meu local de trabalho, fiquei uns minutos a mais, com o carro desligado, só para terminar de ouvir "There There", enquanto eu observava as nuvens correndo por sobre os prédios:
in pitch dark i go walking in your landscape.
broken branches trip me as i speak.
just because you feel it doesnt mean it's there.
just because you feel it doesnt mean it's there.

there's always a siren
singing you to shipwreck.
(don't reach out, don't reach out)
steer away from these rocks
we'd be a walking disaster.
(don't reach out, don't reach out)

just because you feel it doesn't mean it's there.
(there's someone on your shoulder)
just because you feel it doesn't mean it's there.
(there's someone on your shoulder)

there there

why so green and lonely?
heaven sent you to me.

we are accidents
waiting waiting to happen.

we are accidents
waiting waiting to happen.
Até ontem, eu pensava que havia caído em meu colo, por puro acidente, um tesouro, brilhante como o Sol, enviado para mim talvez diretamente das mãos de Deus, mas me esqueci que sempre há nuvens: o que resta, hoje, é o vazio de eras passadas, que acho que vai persistir até que eu me dissolva na Terra. Acho que foi ontem, quando me botaram na rua, que me disseram que eu sou um príncipe. Não, não mesmo: eu sou um saco de ossos ambulante, rei de lugar nenhum...

É: eu ainda posso dizer, como na canção, "Nós somos acidentes esperando para acontecer", mas creio que eu vou ter que esperar um bocado mais - e é bem provável que nada aconteça.

Me resta a academia.

domingo, 30 de maio de 2010

Imagens do Brasil


Acabo de sair do cinema, onde, impulsionado por uma promoção ("Sessão Desconto") que vende ingressos a menos de um terço do valor cheio, vi um filme nacional: "Chico Xavier".

Ultimamente, tenho visto um bocadinho de filmes, em vídeo, na TV a cabo e no cinema. Antes desse de hoje, eu tinha visto, por exemplo, um filme anglo-macedônio meio antigo, "Antes da Chuva" (em vídeo), Clint Eastwood e seu discurso de direita em "Gran Torino" (TV a cabo), e um filme finlandês deprimente, "Luzes na escuridão" (cinema). O contraste com "Chico Xavier" é patente.

Um bocado de tempo atrás fiquei surpreso com "2 filhos de Francisco", filme que conta a vida de uma dupla sertaneja, e a surpresa foi boa: eu vi o Brasil, não aquele Brasil estereotipado - Nordeste, bandidagem da perifas do Rio e São Paulo, ou classe média urbana da Zona Sul do Rio - mas outro Brasil, muito mais próximo daquele em que eu e uns tantos porcentos da população brasileira vivemos cotidianamente.

Acho que o retorno que essa cinebiografia "pioneira" teve (segundo a wikipedia "recorde de bilheteria do cinema brasileiro")  prestou o grande serviço de abrir as portas para o ramo das cinebiografias e documentários nacionais populares: apareceram assim "Lula, o filho do Brasil", "Rita Cadillac, a lady do povo" e "Alô, alô, Terezinha" (sobre o apresentador Chacrinha). Eu, brasileiro, acho muito bom que isso esteja acontecendo. O Brasil precisa se ver nas telas do cinema, e não só o Brasil dos estereótipos ou das preocupações da elite bem alimentada.

"Chico Xavier" cumpre bem essa tarefa de entreter o público mais comum, sem grandes aspirações intelectuais. É um filme de entretenimento, informativo e televisivo, e por isso mesmo, por ser televisivo, é profundamente brasileiro, mostrando uma face importante da cultura brasileira (há TVs em quase 100% dos lares brasileiros), e faz questão de se expor assim mesmo: dirigido por um famoso diretor de TV, o filme parte de uma entrevista do médium na finada TV Tupi.

Além disso, onde mais, senão no Brasil, existe alguém como Chico Xavier? Eu digo "existe", pois o sujeito é, ainda hoje, quase dez anos após sua morte, um marco cultural, um grande vendedor de livros e difusor de idéias religiosas sincréticas.

O Brasil é uma salada, mas uma salada com um gosto próprio, com cores, cheiros e temperos locais que não podem ser encontrados em nenhum outro lugar, e o cinema brasileiro deveria documentar isso. Me parece que ele acordou tarde, mas ao menos parece ter acordado. Eu, brasileiro que vive numa linha fina entre a elite e o resto do país, torço para que isso continue e que copiemos cada vez menos os modelos estrangeiros, abrindo os olhos para o que há de nosso nesse país e povo imenso em que estamos mergulhados.

(imagem: uma jaboticabeira carregada, árvore que, segundo a wikipedia, é nativa do Brasil; além disso, como este é um ano de copa do mundo não é à toa que eu me lembro de Araquém. Quem? Araquém, o Show Man! Mas o Araquém homenageado nesta postagem é outro: é um fotógrafo da natureza aparentemente bastante importante, autor de um livro que empresta seu título para esta postagem)

sábado, 29 de maio de 2010

A insustentável leveza do ser

Este blog esteve fechado, por razões pessoais, nos últimos vinte e poucos dias. Para fazê-lo voltar a funcionar tive que impor regras novas para os comentários - eles agora só serão publicados depois de minha aprovação. Viver, especialmente em público, é complicado, perigoso, exigindo certos cuidados que eu não tinha tomado, por preguiça ou excesso de otimismo. Não posso ter esses luxos.

Enfim, devo voltar a escrever, e para isso retorno ao meu teclado com a cópia de um trecho retirado de uma edição antiga de "A insustentável leveza do ser", de Milan Kundera, da finada Editora Rio Gráfica, livro que eu comprei em uma banca de revistas em 1986, e que hoje tem páginas amareladas, envelhecidas como eu:
"Ao contrário de Parmênides, Beethoven considerava o peso como algo de positivo. "Der schwer gefasste Entschluss", a decisão gravemente pesada está associada à voz do Destino ("Es muss sein!"); o peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.
Essa convicção nasce da música de Beethoven, se bem que seja possível (ou talvez provável) que ela seja mais da responsabilidade dos exegetas de Beethoven do que do próprio compositor; todos nós a compartilhamos de uma certa forma hoje em dia: para nós, o que faz a grandeza de um homem é ele carregar seu destino como Atlas carregava sobre os ombros a abóbada celeste. O herói de Beethoven é um halterofilista que levanta pesos metafísicos." 
Atlas eu também, carrego meu destino, minha história pesa sobre meus ombros como o céu, e eu não me sinto nenhum herói. Sinto sim outra coisa: debaixo do céu parece que, finalmente, encontrei meu lugar, e me vejo escrevendo minha história, o que embora canse, me faz feliz...

sábado, 1 de maio de 2010

Sobre o amor e a morte


Acabo de chegar do cinema, onde vi uma comédia de Woody Allen. O personagem central do filme é um físico, eu também. O personagem central do filme tenta se matar - mais de uma vez - e, se tivesse uma arma aqui nessa casa, agora, ah!

Morrer. Morrer. Morrer. Não consigo parar de pensar nisso. O meu fluxo de pensamento vai a outras regiões e, invariavelmente, volta a isso.

Razões? Nenhuma, assim como não há nenhuma para eu estar aqui. Mas posso tentar argumentar com o que vi no filme, que é uma comédia agradável sobre relacionamentos, um bando deles. E como em todo filme agradável tudo acaba bem, pois, afinal, ninguém (bem, quase ninguém) vai ao cinema para sair com um gosto ruim na boca.

Mas, obviamente, é tudo uma bobagem enorme: toda essa coisa de relacionamentos humanos é uma merda, que só aparece de forma realista no cinema em raríssimas ocasiões. Deixa eu me explicar melhor: como físico, eu sei que a existência de simetrias é importante; no entanto, embora possam existir simetrias ideais e bonitinhas na natureza, as que existem mesmo, em geral, são feias, quebradas, quase não-simetrias. No relacionamento humano é a mesma coisa: nos filmes e livros pode-se imaginar relacionamentos simétricos, bonitos, regulares, mas o que há no mundo do lado de cá das páginas e telas é algo completamente diferente, quase sempre assimétrico - os lados de um casal quase nunca sentem o mesmo igualmente; um deles está sempre numa posição "superior" e aí pobre de quem é o "inferior".

Por isso tudo, amar e buscar relacionamentos é algo infeliz, estúpido e doentio, mas, felizmente, é uma doença que se cura com a morte (ou assim espero).

Ah! se tivesse um revólver nessa casa, ou se fosse um prédio, não uma casa... Eu sei que, de verdade, eu queria outra coisa, mas o que me resta, hoje, é só querer morrer. E nem isso eu vou conseguir, pelo menos não agora: hoje, eu sofro de um desejo absurdo de amar, que eu sei que não vai ser satisfeito, ficando no lugar dele esse desejo maravilhoso de morrer, que a minha covardia me impede de saciar.

(imagem: há um filme de Woody Allen, de 1975, cujo título original em inglês é "Love and Death" [Amor e Morte], onde aparece o diálogo "Sonja: You were my one great love. Boris: Oh, thank you very much. I appreciate that. Now, if you'll excuse me, I'm dead" [Sonja: Você foi meu único grande amor. Boris: Oh, muito obrigado. Gostei disso. Agora, me desculpe, eu estou morto], mas o título dessa postagem vem também de outro lugar; a foto de Woody Allen saiu da premiére de "Whatever Works", o filme que eu assisti hoje)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pruit Igoe and Prophecies


Na casa de meu pai há um quarto que já foi o meu. Nele, agora, ocupando o espaço que já foi meu, se acumulam livros que meu pai não sabe onde por. É uma espécie de troca justa: a primeira vez em que saí da casa de meus pais foi para me envolver mais a fundo com livros e estudos.

Na verdade, sempre vivi cercado de livros, cadernos, revistas. Quando adolescente, ansioso por ter o meu estilo, eu fazia as capas dos meus cadernos, com plástico autocolante e recortes de revistas que eu comprava em duplicata. Não me esqueço de que fui estudar, no interior do estado, com um caderno que tinha na capa um mapa de Marte, tirado de uma revista de astronomia da antiga Rio Gráfica Editora, que eu só encontrei depois de percorrer uma infinidade de bancas. 

Li muita coisa comprada em bancas de revistas. Quando fui morar no interior, o pouco dinheiro que sobrava da mesada de meu pai eu gastava em livros, revistas, especialmente graphic novels, e cinema. Acho que foi nessa época que eu vi Koyaanisqatsi, que é um dos filmes que mais me marcou (ele está lá no meu perfil), por não ter palavras.

Pois bem, tudo isso que eu contei até agora serviu de preâmbulo para o dia de hoje. Em meu antigo quarto, além dos livros, há uma TV com um aparelho de DVD, e neles eu assisti, hoje, um filme que estava em minha mochila há dias, "Watchmen", uma adaptação para o cinema de uma graphic novel que eu comprei em sei-lá-quantos suados fascículos.

A parte da história em quadrinhos que mais me emocionou (e que já apareceu neste blog, numa versão animada dos quadrinhos) é a do cientista que vira um semideus por acidente e vai para Marte, para se afastar de problemas pessoais. Eu sempre quis fazer isso, fugir para Marte, mas, hoje, o máximo que posso fazer é fugir para a casa do meu pai. E ao ver hoje o filme, que é fiel aos quadrinhos, reconheci de imediato a trilha sonora escolhida para essa sequência: é um trecho de Koyaanisqatsi...

Ou eu sou uma pessoa muito ordinária, de gosto muito mediano, ou o universo está de sacanagem comigo, sorrindo da minha cara de idiota.

(imagem: música, música, música...)

Sonata ao luar


Eu queria escrever pela última vez.

Eu queria escrever uma coisa - uma frase, um texto, um poema - que fosse tão relevante, tão cheia de significado, de modo que nada mais que viesse depois dela fizesse sentido.

Eu queria escrever o que eu sinto, mas o que sai, sempre, são essas porcarias de palavras que eu escrevo.

Eu queria não querer escrever.

Eu queria não querer.

E ainda assim eu quero, como se isso significasse algo. O ruim é que eu sei que querer não é poder: querer é sofrer. Eu quero, mais que tudo, com todas as células, moléculas e forças do meu corpo e da minha alma, uma de duas coisas: a utopia ou a morte. No fim, tudo que eu tenho é essa agonia, indescritível, que me queima sem queimar.

Não, não sei até onde eu vou: já escrevi demais.

(imagem: o vídeo é da Sonata ao Luar de Beethoven - eu queria ser capaz de escrever um texto que passasse essa emoção toda...)