segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Ensaio sobre a cegueira


Li, em algum lugar, que olhar seios de mulheres faz bem ao coração: pena, é só mais uma ficção divulgada com força pela internet...

Sei que quando não quero pensar em nada, procuro e acho facilmente mil bobagens digitais, e muitas - muitas mesmo - fotos e vídeos de seios, bundas e tudo mais. Como eu, há muito público para o sexo.

Enfim, às vezes, nessa busca, eu me lembro do que li ainda criança:
"As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam."

E eu via, como uma criança, Deus e a beleza - em uma palavra, a divindade - em cada canto. Hoje, vendo o que vejo, acho que o mundo ficou cego - e eu com ele.

(imagem: screenshot da página de entrada de um site para adultos)

Em busca do tempo perdido


Eu estava na Ilha do Cardoso, quase sozinho, o penúltimo de uma fila numa trilha no mato que vai para o Poço das Antas, quando uma borboleta cortou o meu caminho.

Ela era azul - e gigantesca. Suas asas brilhavam com uma cor irreal, mais azuis que o céu ou que qualquer cor posta em telas ou filmes.

Voou ao meu redor e, breve, voltou a entrar na mata.

E eu, instantaneamente, me lembrei de quando eu era capaz de amar...

(imagem: uma borboleta, na wikipedia)

O tempo e o vento


O horizonte está logo ali; no entanto, mesmo navegando sempre em frente, nunca o alcanço...

O céu, à noite, parece um pomar de estrelas: sinto que é só erguer a mão para alcançá-las; e, contudo, por mais alto que eu vá, não fico um centímetro mais perto...

Dia após dia, continuo aqui, com um oceano ao meu redor e, ao mesmo tempo, sem poder saciar minha sede. Só quando chove, e eu abro a boca para receber algumas gotas, é que me lembro de que nem toda água é salgada...

E como consolo, no meio do silêncio, vem à superfície da minha mente, algumas vezes, a letra de algumas músicas:
"Is this the real life?
Is this just fantasy?
Caught in a landslide
No escape from reality
Open your eyes
Look up to the skies and see
Im just a poor boy, I need no sympathy
Because I'm easy come, easy go,
A little high, a little low,
Anyway the wind blows, doesn't really matter to me,
To me"

Ao longe, vejo clarões e estrondos: será um Ano Novo sendo celebrado em algum canto ou apenas mais uma tempestade? Não faz a menor diferença. Certamente outros tempos virão, em breve, mas não creio que os ventos mudem - e mesmo que mudem, não servirão para mim: estou longe demais da terra...

(imagem: mensagem de Ano Novo, entalhada em madeira, do século XV)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Paraíso Perdido


Acordei, hoje, sonhando que estava de volta ao ensino médio, em uma esola pública. Meio que aturdido pelo sonho, fiquei na cama, antes de levantar, pensando na escola pública e nos alunos que saem dela hoje. E me lembrei de minha infância, passada em escolas públicas.

Lembrei de que tive bons professores - uma de minhas professoras de geografia, por exemplo, era esposa de um escritor famoso, J.C. Marinho Silva, autor de "O gênio do crime", e nos contava de suas viagens à Europa. Outra, professora de química, era esposa de um gerente de banco - na época cargo de muito respeito - e era o exemplo mais vívido que eu tinha de uma "dama". Minha professora de 4a. série nos ensinava canções em francês - não me esqueço do "Frère Jacques, dormez-vous? Sonnez les matines..." E assim vai. Hoje, acho que não há nada parecido nas escolas públicas: a classe média não está mais lá.

Em meu tempo de estudante, o sonho não era estudar num colégio particular, mas no principal colégio público, no centro da cidade (em Guarulhos, o Conselheiro Crispiniano, em Santo André, o Américo Brasiliense, em Mauá, o "Viscondão", todos colégios com vestibulinhos disputados), ou em um colégio técnico, também público, como as ETEs e escolas técnicas federais. Hoje, quem pode paga para separar seus filhos da pobreza (eu, inclusive). As escolas públicas ficaram para os pobres, um reduto de quem não tem recursos e status.

Em meu tempo de estudante, eu ia com meu pai ao centro da cidade de São Paulo, para me maravilhar com as vitrines do Mappin: lá vi, pela primeira vez, quando tinha uns dez anos, uma raquete de tênis - e me deslumbrei! O centro velho de São Paulo tinha muitas coisas boas além do Mappin: a Mesbla, da 24 de maio, as Grandes Galerias, a Ultralar, onde comprei, adolescente, meu Sgt . Pepper's, em LP, a Baratos Afins. Hoje, só há camelôs e as Casas Bahia, e a classe média vai aos "shoppings". O centro velho foi abandonado e virou uma sombra do que já foi.

Em meu tempo de estudante os cursos de licenciatura eram feitos junto com o bacharelado. No IFUSP, onde me graduei, eu tive a opção de cursar as disciplinas da educação junto com as do bacharelado em física. Minha turma foi a última: daí em diante houve uma completa separação dos currículos, e já no vestibular os alunos deviam optar entre licenciatura ou bacharelado, sem intersecção. No final da graduação, fui monitor de uma dessass turmas de licenciatura: só alunos vindos de escolas públicas, de bairros de periferia, com sérias falhas na formação. A classe média não estava lá.

Em meu tempo de estudante, não havia TV paga - a TV era a mesma para todos, ricos ou pobres. Havia programas como Cosmos e Jacques Cousteau para todos. Havia o Chacrinha, é claro, mas não havia o culto da celebridade vazia, como acontece nos tempos atuais, com o Big Brother. Uma celebridade que nunca esqueci , da TV, foi o Mequinho: eu pedi e ganhei no Natal um jogo de xadrez com a marca dele, fabricado pela Gulliver. Onde estão os Mequinhos de hoje? (O Estadão publicava uma coluna de xadrez.) Hoje, a TV aberta é refúgio da pobreza, voltada para ela: a classe média não está lá.

É como se nossa sociedade tivesse se separado. Os ricos - às vezes nem tanto - criaram seus refúgios feudais: condomínios fechados, escolas particulares, coisas como a Daslu, canais de TV particulares, fechados. E os pobres, de fora dessses castelos, ficaram por conta própria, recebendo esmolas e migalhas. Uma visão sombria, provavelmente simplista, mas acho que com um fundo de verdade. Me levantei entristecido.

No café da manhã, ao pegar o jornal, vi que a manchete principal era "Desigualdade educacional no Brasil é ainda maior que a de renda". Juro que eu não sabia.

(imagem: "A queda de Lúcifer", ilustração de Gustave Doré para o livro O Paraíso Perdido de John Milton; a frase famosa desse livro é "Better to reign in Hell, than serve in Heaven" (melhor reinar no inferno, do que servir no paraíso) - vi isso quando era criança, na TV aberta.)

domingo, 23 de dezembro de 2007

Casa Grande & Senzala


Na Folha de São Paulo deste domingo saiu uma entrevista com o autor de um livro sobre o movimento guerrilheiro peruano Sendero Luminoso, "La Cuarta Espada", onde li o trecho:
"Agravava a situação o fato de que os senderistas viviam num mundo muito pequeno. Debatiam e casavam entre si. O extremismo passou a parecer algo normal, porque perderam os referenciais do mundo de fora."

Oras, oras: e as pessoas aqui no Brasil que vivem em lugares como Alphaville (nome tirado de um filme de Godard, eu acho - é interessante comparar o verbete em português com o verbete em inglês na wikipedia), também não vivem em mundos pequenos, debatendo e se casando entre si? Aliás, acho que não é necessário nem ir tão longe: a classe média brasileira, enclausurada em seus bairros e prédios chiques, também não vive debatendo e se casando entre si, ignorando o resto do país?

Já passei por várias universidades públicas, como aluno ou funcionário, e nelas encontrei muito poucos negros ou pardos, que acho eu não são tão minoritários assim na população brasileira (para usar dados, pretos e pardos formavam 44,5 % da população no censo de 2000)... Aliás, segundo o IBGE, no censo de 2000,

"a população que se declarou de cor preta aumentou quase duas vezes mais que a que se declarou branca e oito vezes mais que a parda, mas os brancos constituem 53,7% da população, sendo que, entre empregadores, os brancos são 80%."

Mas o mais interessante que vi foi o ocorrido num curso de bioquímica da USP, que servia de disciplina optativa para mim, mas era obrigatória para os estudantes de odontologia. O professor, na primeira aula, perguntou quem ali tinha pai ou mãe ou irmão ou tio dentista. Acho que só eu não levantei a mão.


Enfim, só mesmo nas novelas a moça pobre se casa com o rapaz rico - e vice versa.


(imagem: a família brasileira, na visão de Debret)

sábado, 22 de dezembro de 2007

Madame Bovary


Ontem, ao almoçar com colegas de trabalho, fui surpreendido por uma moça que disse que se fosse um animal seria um pingüim. Não tenho nada contra os pingüins, acho-os criaturas belas e simpáticas, mas ser um deles não é o meu sonho de vida, e acho que deve ser o sonho de pouca gente. Mas talvez não seja assim: a comunidade Linux, afinal, escolheu um pingüim como símbolo.

Imagino, entretanto, que deve ser mais fácil eu ser um pingüim do que entender as razões por trás dos pensamentos e desejos femininos. Certamente, eu seria incapaz de escrever Madame Bovary...

(imagem: um pingüim, nadando, na wikipedia)

Ensaio sobre a população


Li hoje que a população brasileira não cresceu tanto quanto se imaginava. Mas, para mim, o interessante foi ver a distribuição de pessoas com mais de 100 anos na população dos estados: São Paulo tem cerca de 40 milhões de habitantes e mais ou menos 750 idosos acima de 100 anos, ao passo que Minas Gerais tem 19 milhões de habitantes e 1400 idosos centenários. A Bahia, por sua vez, tem quase 1900 idosos com mais de 100 anos...

A pesquisa do IBGE foi feita apenas em cidades pequenas, e é bastante possível que se cidades grandes fossem incluídas haveria mais centenários em São Paulo. No entanto, eu fiquei com uma pulga especulativa atrás da orelha: como Minas e Bahia têm maior número de negros na população que São Paulo, será que não estaria aparecendo aí uma correlação entre longevidade e raça?

Em tempo: antes que possam me chamar de racista, deixo claro que não gosto do conceito de raça, mas é óbvio que existem diferenças físicas entre caucasianos e negróides. E, bem, eu, "caucasiano" e paulista, sou casado com uma bela moça negra, nascida no interior de Minas...

(imagem: mulheres negras retratadas por Debret)

O mundo como vontade e representação


Ontem, após o almoço, incomodado por um fiapo de carne, fui procurar um palito de dentes, e encontrei apenas uma caixa vazia. Assim, fiz uma anotação mental para me lembrar de ir ao supermercado comprar outra caixa.

No final do dia, lembrei da necessidade de ir ao supermercado e fui. Lá, logo na entrada, havia duas grandes bancas de CDs e DVDs em promoção. Mergulhei por uma boa meia hora na confusão de títulos e acabei comprando um filme antigo, Quadrophenia, com o cantor Sting ainda jovem.

Passei por um sem fim de corredores e gôndolas e, em cada lugar, encontrei alguma coisa útil ou interessante. Comprei uma caixa de leite, um livro infantil, uma camiseta, uma garrafa de vinho francês (de 250 ml - pena que não fabriquem garrafas como essa, individuais, aqui no Brasil: em casa só eu bebo vinho) , xampú, uma pizza, cereais, e mais um mundo de pequenas coisas cotidianas. Nisso gastei uma ou duas horas.

Então já era noite, e eu fui jantar em casa, depois de guardar as compras. Depois do jantar, incomodado com um pedacinho de pizza entre os dentes, fui pegar um palito - e só aí descobri que eu esqueci de comprar a caixa de palitos.

Quando eu comecei a escever esse blog eu tinha um objetivo: escrevi e escrevi, só para perceber que o que eu queria dizer, lá atrás, ainda não está escrito. E tudo isso é só uma metáfora da minha vida: o que eu buscava ainda não encontrei, por me perder entre atividades e pessoas que não têm nada a ver com o que eu queria fazer de mim... Estou - acho que estamos todos - bebendo a cada dia as águas servidas por Maya.

(imagem: túmulo de Arthur Schopenhauer, autor do livro que dá título a esta postagem)

domingo, 16 de dezembro de 2007

Cronistas do descobrimento


Na "Carta do achamento do Brasil", de Pero Vaz de Caminha, encontrei o seguinte trecho:
"E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite."

Mais tarde, os degredados reaparecem no relato:

"Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida."

Relocalizo estes "degredados e desertores" em um livro do historiador Eduardo Bueno, "Brasil: terra à vista!":

"Não existe nenhuma informação sobre o destino dos dois grumetes que desertaram da esquadra de Cabral e decidiram permanecer na nova terra. Provavelmente eram meninos entre os 14 e 16 anos, e é possível que tenham sido "adotados" pelos nativos, passando a viver como eles. Quanto aos dois degredados, abandonados aos prantos à beira-mar, tiveram um exílio tropical de apenas 20 meses: em dezembro de 1501, a dupla foi recolhida pela primeira expedição enviada para explorar o Brasil."

Não sei quem teve melhor destino: se os resgatados, que de início ficaram à força, chorando, ou os sumidos, que desertaram atraídos pela terra nova.

De qualquer modo, escrevi isso tudo só para dizer que descobri há algum tempo que eu faria o caminho dos grumetes, e não derramaria uma lágrima pelas naus que se vão.

(imagem: ilustração da nau de Pedro Álvares Cabral, na Wikipedia)

O livro dos seres imaginários


Comprei ontem "O livro dos seres imaginários", de Jorge Luis Borges: é um dicionário, com um punhado de definições de criaturas que nunca existiram materialmente. Lendo-o, tive a nítida impressão de que eu poderia me candidatar a aparecer como personagem, ainda que secundário, das futuras edições desse livro. Certamente, em uma versão que existe na biblioteca de Babel, eu apareço, numa nota de rodapé.

(imagem: trecho de pintura de Hieronymus Bosch)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Suave é a noite


Na nossa estadia na Ilha do Cardoso houve o aniversário de uma aluna. Seguindo a oferta do pessoal que mora na ilha, aceitamos que eles abrissem um botequinho na beira da praia, por mais ou menos duas horas, na noite de sábado, para que os alunos fizessem uma festinha.

As luzes do bar - um barracão de madeira - eram muito fracas e quase não venciam a noite. Assim, quase ninguém deve ter me visto ir para um canto, onde, vendo as 'crianças' dançar forró e os outros professores conversar, redescobri pela milionésima vez que eu, e acho que apenas eu, não tenho nada a festejar.

Acho que meu lugar não é entre os homens: é numa linha que corre por entre as estrelas e o mar, por entre as ondas e a praia vazia, no escuro de um céu naturalmente iluminado...

(imagem: Noite estrelada, de van Gogh)

A ilha


Estive no Parque Estadual da Ilha do Cardoso acompanhando um grupo de alunos e professores. Numa caminhada de uns tantos quilômetros, na beira da praia, vimos, em dois pontos distintos, dois botos mortos. Sinal de que há muitos deles por lá. Sinal de que a vida, apesar de nós e nosso número, prossegue.

(imagem: praia da Laje, na Ilha do Cardoso)

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Os dragões do Éden


Vi esta semana uma palestra em que um cientista apresentava a si mesmo através de seu trabalho. Logo no início o palestrante usou a imagem de uma caixa de ferramentas - isso mesmo: uma caixa de ferramentas, com chaves de fenda, alicates, grifos e sei lá mais o quê. Para mim, foi como se ele disesse: "veja, o cientista não é nada mais que um técnico, um encanador, um pedreiro ou um dentista, alguém treinado para usar as ferramentas adequadas no momento adequado".

Não tenho nada contra pedreiros ou encanadores ou dentistas: mas não entrei na ciência por isso. Senão eu seria um encanador ou pedreiro ou dentista. Eu quis ser cientista, e não um profissional. Eu quis fazer arte, e não ter uma profissão.

Mas acho que ninguém mais vê isso, a ciência como arte: é um negócio, com dinheiro e recompensas distribuídos a quem sabe fazer negócios. Meus colegas se vestem como empresários, cabelos alinhados, roupas impecáveis, e se tornam diretores e têm projetos e verbas e financiamentos, enquanto eu, o oposto disso, não tenho nada além de um punhado de idealismo, que a cada dia vai minguando mais e mais.

Não sei mesmo o que faço no meio dos cientistas: acho que me daria melhor sendo um golfinho ou um boto, inteligente apesar de (ou por) não usar ferramentas... E para não parecer tão maluco, aqui eu cito Carl Sagan, em "Os dragões do Éden", onde ele diz que
"a criatura com maior massa cerebral em relação a seu peso corporal é a denominada Homo sapiens. O próximo nesta escala é o golfinho."

Ou seja, já que eu não posso, por pura incompetência, estar entre os primeiros, eu me contentaria, de bom grado, em estar entre os segundos. Pena que eu tenha escolhido errado.

(imagem: um casal de botos)

sábado, 24 de novembro de 2007

O estrangeiro


"O estrangeiro" é um livro do escritor francês/argelino Albert Camus que, em palavras que não são minhas, "prenuncia e simboliza todo o vazio moral da nossa era." Não sei se nossa era é de um vazio moral tão grande, mas há sim certo cinismo e bastante hipocrisia no ar, que não sei se são só de nossa era.

Por exemplo, no Brasil há desde sempre uma enorme disparidade social - os ricos têm muito, e os pobres, muito pouco:
"O Brasil é o oitavo pior em outro indicador usado para medir desigualdade, o Índice de Gini, cujo valor varia de 0 (quando não há desigualdade, ou seja, todos os indivíduos têm a mesma renda) a 100 (quando apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade). O índice brasileiro é 59,3 — melhor apenas que Guatemala (59,9), Suazilândia (60,9), República Centro-Africana (61,3), Serra Leoa (62,9), Botsuana (63,0), Lesoto (63,2) e Namíbia (70,7)."

No entanto, os brasileiros acham isso normal. Nos jornais e blogs de brasileiros (escritos obviamente por pessoas que não vivem na pobreza) não se fala nisso. Mas os estrangeiros, quando nos observam, notam o contraste e se espantam... Por exemplo, a AFP (Agence France-Presse) publicou esta semana uma notícia sobre a Starbucks no Brasil, cujo título é "Starbucks finds success as 'refuge' for Brazil's rich (Starbucks encontra o sucesso como 'refúgio' para os ricos do Brasil)". Não vi um comentário em blogs do Brasil, e a notícia quase passou desapercebida nos jornais brasileiros que eu assino (ponto para a Folha, que deu a notícia escondida, mas deu). Mas basta procurar no Google, e a notícia pode ser vista em jornais do mundo todo.

De qualquer modo, acho que, provavelmente, os blogueiros do Brasil estavam todos ocupados demais discutindo assuntos mais relevantes. Ou, quem sabe, seguiam os pensamentos de Meursault, personagem de Camus:

"Que m'importaient la mort des autres, l'amour d'une mère, que m'importaient son Dieu, les vies qu'on choisit, les destins qu'on élit, puisqu'un seul destin devait m'élire moi-même et avec moi des milliards de privilégiés qui, comme lui, se disaient mes frères. (Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia me escolher e, comigo, os milhares de privilegiados que, como ele, se diziam meus irmaõs?)"
(imagem: capa do disco Standing on a beach, do grupo The Cure, em que aparece a música "Killing an arab", baseada n'O estrangeiro de Camus)

domingo, 18 de novembro de 2007

Canção do exílio


O que me distancia do mundo? Um punhado de coisas. Por exemplo, acho que se alguém disesse que imaginou um acidente de avião, com o avião caindo em um determinado lugar (sei lá, Diadema, talvez), e se logo depois essa imagem se tornasse realidade, com o acidente acontecendo de verdade, mesmo assim a maioria de meus conhecidos, cientistas e céticos, diria que era apenas coincidência. Já eu, não tão cheio de certezas, teria que discordar, pois para mim seria coincidência demais.

O que me distancia do mundo? Moro numa periferia, onde a língua é outra e os olhos vêem diferente. No meu horizonte, hoje, há morros cheios de casas, e ruas com algumas árvores. Meus conhecidos não têm essse panorama. No entanto, embora o que eles vejam e sintam não seja o mesmo que eu, não creio que seja só uma questão de geografia. Meus vizinhos, moradores de periferia como eu, também não são como eu: também não falo a língua deles.

O que me distancia do mundo? Não sei. Só sei que acho que saber, inutilmente, que o bem-te-vi, que canta de cima de minha antena de TV, se chama Pitangus sulphuratus, só aumenta a beleza que vejo no mundo, e que isso, dentre outras tantas coisas, me faz ser muito só.

(imagem: um bem-te-vi - ou grande-kiskadi, segundo a Wikipedia)

sábado, 17 de novembro de 2007

Ok Computer


Em Campinas, participei de um encontro latino-americano de biomatemática, muito interessante, e que teve como atividade social de encerramento um encontro num bar de Barão Geraldo.

Meus companheiros conversavam sei lá sobre o quê. A banda do bar tocava algo de rock brasileiro dos anos 80 ou 90. Moças buscavam rapazes que buscavam moças. Uns bebiam, outros falavam em português, outros em espanhol. Um bebê nos acompanhava, estranhamente tranqüilo.

Chovia muito, e eu fiquei, de meu lugar na ponta da mesa, ao lado da porta, vendo, na noite, a chuva cair sobre pequenas luminárias de jardim, postas no chão, na entrada do bar. A chuva, ao encontrar as lâmpadas, formava pequenas nuvens, que faziam perceber imediatamente o calor das lâmpadas.

E assim me percebi, sem novidade alguma, inútil, na noite chuvosa dos tempos presentes.

Um casal hispano-falante me disse que falo bem o espanhol. No momento, só pude agradecer o elogio, mas eu sei que não é verdade: não falo bem a língua dos homens, e o silêncio que cerca esse blog é mais um sinal concreto disso.

Enfim, eu estou preso, a mim mesmo, por ordens do destino:

"Arrest this man,
he talks in maths,
he buzzes like a fridge,
he's like a detuned radio."
(Prendam esse homem,
ele fala em matemática,
ele zune como uma geladeira,
ele é como um rádio fora de sintonia.)

(imagem: o prédio do IMECC, da Unicamp, visto por dentro em toda a sua glória concreta, e que, para mim, se parece com uma prisão, embora seja bastante agradável)

domingo, 11 de novembro de 2007

Os miseráveis


Li hoje, na Folha de São Paulo, sob o título "Xícara de cafeteria vira suvenir clandestino", que "clientes da rede Starbucks estariam levando objeto de lembrança para casa" - na reportagem, aparece até a frase "clientes levam mesmo, é da cultura do brasileiro", dita por "funcionário de loja da rede de cafeterias Starbucks, que não se identificou, sobre o sumiço de 90% das xícaras em um mês".

Tá bom, não deve ser roubo: é da cultura brasileira mesmo, é só coleção... E quem faz esse tipo de coleção? Basta buscar no Google: "Adoro o café de baldão da Starbucks', diz Marina Person, VJ da MTV, que coleciona as canecas térmicas da loja." E, como se sabe, pessoas como Marina Person são a elite brasileira, logo, está tudo bem.

E eu me lembrei de uma outra história, bem antiga:

"Maria Aparecida de Matos, 24 anos, empregada doméstica, mãe de dois filhos, privados no momento do convívio com a mãe, está presa há quase um ano em São Paulo porque teria tentado furtar um xampu e um condicionador em uma farmácia (cf. matéria de Gilmar Penteado, Folha de S. Paulo de 12.04.05, p. C1). Mal sabe desenhar o nome e, depois de ter sido agredida dentro do presídio, acabou perdendo a visão do olho direito."


Pois é: Maria Aparecida... Se ainda fosse Marina, podia ter sido desculpada, mas com esse nome... A ela a lei, o olho por olho, e aos outros a beleza de uma caneca nova em casa.




(imagem: ilustração do livro Os miseráveis, de Victor Hugo)

sábado, 3 de novembro de 2007

Introdução à topologia


Em uma de minhas aulas de ecologia eu ensinei aos alunos que uma das grandes questões da biologia é o sexo: qual a razão dele existir? Não seria mais simples e eficiente se reproduzir sem sexo? Afinal, é o que as bactérias e samambaias fazem...

O sexo tem um custo alto para os indivíduos: há a necessidade de órgãos especializados, sem falar no gasto com busca de parceiros, corte, competição com outros indivíduos - e, no entanto, existem machos e fêmeas (com eventuais hermafroditas aqui e ali).

Eu acho tudo isso uma grande sacanagem - eu sou um macho humano, com as vantagens e desvantagens que ser humano e macho acarreta: e parece que biologia é destino. Por isso, gostaria que o hinduísmo estivesse certo no que diz respeito à reencarnação: seria bom poder reencarnar como outro ser, de tipo diferente do que eu sou.

Ah! Aqui entro no reino das especulações: se eu fosse viver outra vida eu seria ainda eu ou outro totalmente diferente? Minha alma, se pudesse migrar para outro corpo, continuaria a mesma, ou mudaria conforme o corpo? Biologia é destino?

Há na matemática um ramo que estuda as transformações que um corpo pode sofrer mantendo ainda uma identidade: é a topologia. Topologicamente, uma caneca e uma rosquinha são idênticos, já que um pode ser transformado no outro de uma forma contínua, suave.


Posto de outro modo, há dois tipos distintos de curvas fechadas, onde se volta ao ponto de partida, e que não podem ser deformadas a um ponto, tanto na superfície da caneca quanto na superfície da rosquinha. Canecas e rosquinhas são superfícies de mesmo genus, formadas pelo produto de dois círculos.


Seria a reencarnação algo assim? Poderia cada alma ser identificada por um 'invariante topológico' próprio? Não, eu não sei se existem almas ou se tenho uma, e se tenho se há algo, um número, uma medida, que possa caracterizá-la como única. Talvez eu seja apenas um número na multidão humana, como o 7 escrito por Mário de Sá-Carneiro:


"Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro. "


(imagem: a cidade de Konigsberg, no século XVII, com suas sete pontes que inspiraram o matemático Leonhard Euler a estudar topologia)

sábado, 27 de outubro de 2007

Variáveis complexas e suas aplicações


Há coisas que, muitas vezes, parecem complicadas demais para serem postas de uma maneira simples. Como exemplo posso indicar o cálculo, que é uma parte 'avançada' da matemática. A maioria das pessoas acha cálculo algo esotérico, difícil, complicado - meus alunos, em sua maioria, acham cálculo (e tudo o que o contenha) algo diabólico.

Eu estudei cálculo pela primeira vez quando tinha dezesseis anos, e aprendi sem grandes dificuldades. "Ah! mas então você não é uma pessoa normal!". Talvez... No entanto, eu me vejo apenas como curioso: se possível, com tempo e recursos ilimitados, eu estudaria tudo. Para mim, anormais são os homens que não têm tal curiosidade.

No cálculo 'avançado' estuda-se o uso de variáveis complexas (eu estudei isso num livro clássico de V.R. Churchill), isto é, quantidades que podem ser números reais, como , , , , , , e/ou números complexos, que são múltiplos da raiz quadrada de , isto é, múltiplos de . Nesse tipo de estudo aprende-se algo conhecido como transformações de Möbius, que são transformações que podem ser feitas com os pontos de uma superfície plana bidimensional.

A forma comum de se apresentar as transformações de Möbius consiste em escrevê-las algebricamente, de modo que um ponto qualquer do plano é transformado num novo ponto , tal que



Parece grego, não é? Mas basta usar a imaginação para ver que isso é simples. E para os que não têm tanta imaginação, existe hoje o YouTube:


Esse vídeo ilustra como algo aparentemente complicado vira algo simples se visto da forma adequada. É como a vida: para mim, ela parece desesperadoramente complexa, enquanto que para meus filhos, saudáveis e curiosos, ela é pura magia e diversão...

Enfim, se há uma mensagem que eu quero passar, melhor deixá-la óbvia: muito do mundo, inclusive cálculo, pode ser magia e diversão - basta ter os olhos de uma criança. Eu, por exemplo, embora seja um praticante graduado da área de ciências exatas, há muito tempo não me divertia tanto quanto agora, aprendendo um pouco de biologia.

(imagem: ilustração do século XVII sobre a projeção dos pontos de uma esfera num plano)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O triunfo dos porcos


E é na internet, mais uma vez, que eu encontro dois trechos úteis. O primeiro é da Wikipedia:

"Despite pigs reputation for gluttony, and another reputation for dirtiness, pigs are actually very intelligent." (Apesar da reputação dos porcos como glutões, e outra reputação por sua falta de higiene, os porcos na verdade são muito inteligentes.)

O segundo é de uma música (?) do Radiohead, narrada por uma voz computadorizada como a de Stephen Hawking:

"calm, / fitter,/ healthier and more productive/ a pig/ in a cage/ on antibiotics."
(calmo,/ ajustado,/ mais saudável e mais produtivo/ um porco/ numa jaula/ com antibióticos.)

O que eu tenho a comentar? Nada, nada mesmo. Deixo isso para o Pink Floyd:

"If you didn't care what happened to me,
And I didn't care for you,
We would zig zag our way through the boredom and pain
Occasionally glancing up through the rain.
Wondering which of the buggars to blame
And watching for pigs on the wing."


(imagem: capa do álbum Animals, do Pink Floyd)

Angústia


Toda manhã, logo que acordo, vou tomar um banho e lá repasso mentalmente quais são as tarefas imediatas do dia. Hoje, no banho, me peguei pensando que tinha que ler um texto de ecologia sobre a estrutura de populações. Como o pensamento não é uma coisa linear, acabei me pegando pensando sobre onde eu vivo: embora a população humana na Terra seja de cerca de 6 bilhões de pessoas, o mundo real para mim consiste de menos de 10 pessoas - eu, minha esposa, meus dois filhos, meus pais e um ou dois amigos do trabalho.

E o resto das pessoas? Não são reais, não estão ao meu alcance: são como sombras por entre as quais eu me movo, um pano de fundo com o qual não posso interagir, são nada, não são.

Foi só depois que eu li (em A Economia da Natureza, de Robert E. Ricklefs, 5a. edição, editora Guanabara-Koogan, página 246):

"Uma medida conveniente de movimento numa população é a distância de dispersão média de vida, que indica quão longe um indivíduo vai desde o seu local de nascimento até onde ele se estabelece para amadurecer e se reproduzir. Um círculo com um raio igual a distância de dispersão de vida é a área de dispersão de vida. Tal círculo engloba todos os outros indivíduos na população com os quais um indivíduo poderia potencialmente interagir, ou se acasalar, no seu tempo de vida. O número desses indivíduos define o tamanho de vizinhança de uma população."

Qual será o meu tamanho de vizinhança?


(imagem: "a large hamster cage")

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

As raízes da coincidência


Há eventos que parecem desconexos até que um deles feche o ciclo e exiba os vínculos.

Ontem, vi no programa de tv "Fantástico" uma propaganda, disfarçada de reportagem, da vinda do grupo The Police ao Brasil. Mas antes, pela manhã, na casa dos meus pais li, no Estadão, a crítica de um filme, "A questão humana", que me chamou muito a atenção. Um resumo bastante interessante da idéia central do filme aparece no jornal francês Liberátion:

"Adapté du livre éponyme de François Emmanuel, la Question humaine propose une thèse violente : le libéralisme contemporain est l'enfant, génétique et généalogique, du nazisme."
(Adaptado do livro de mesmo nome de François Emmanuel, A Questão Humana propõe uma tese violenta: o liberalismo contemporâneo é o filho, genético e genealógico, do nazismo.)


E eu senti isso, em meus sonhos, muito antes de saber da existência do filme...

Mas o que o trio The Police tem a ver com isso? Bem, eu sempre pensei que era um quase que total solitário em meus pensamentos e sensações, uma espécie de náufrago no oceano humano, que põe mensagens em uma garrafa. Só que, para meu espanto, não estou tão só assim: eis que



"Walked out this morning, dont believe what I saw
Hundred billion bottles washed up on the shore
Seems Im not alone at being alone
Hundred billion castaways, looking for a home"
(Caminhando esta manhã, não acreditei no que vi
Uma centena de bilhões de garrafas trazidas pela maré
Parece que não estou tão só em estar só
Uma centena de bilhões de náufragos, buscando um lar)


O trecho acima é da música "Message in a bottle", e este blog é isso, uma garrafa cheia de mensagens, minhas idéias, náufragas solitárias que buscam por um lar. Ao ver a reportagem do Fantástico, no final do domingo, a analogia e a música apareceram instantaneamente em minha mente.

E nessa sequência o que me assustou mesmo foi a sincronicidade de meus sonhos com a exibição do filme em São Paulo e disso tudo com a música do The Police, que tem um disco famoso chamado "Synchronicity"...

(imagem: dados)

sábado, 20 de outubro de 2007

Admirável mundo novo


Depois de um pesadelo com o nazismo, voltei a dormir. E voltei a sonhar a continuação do sonho anterior. Dessa vez eu havia fugido dos nazistas e estava escondido num hotel, com minha família, fazendo contas para ver o quão longe do nazismo nosso dinheiro poderia nos levar.

Olhei pela janela e vi uma concessionária de carros, onde homens ricos testavam novos modelos da Mercedes-Benz. O que me chamou a atenção é que havia uma piscina onde se podia testar carros anfíbios. Mas havia mais: alguns carros voavam!

Foi só então que eu entendi: eu estava no futuro...

Espero que meu subconsciente esteja errado.

(imagem: a Mercedes-Benz de Hitler, em exposição no Museu Canadense de Guerra)

O homem do castelo alto


Acordei no meio da noite passada, assustado com a realidade do sonho que eu presenciara. Me vi num mundo onde o nazismo havia vencido a guerra. Para meu maior espanto, eu estava no meio de um quartel-general deles, vestido como um deles, que eu sabia não ser. Tentei fugir antes que me descobrissem, mas era impossível: minhas coisas, em meus alojamentos, já estvam jogadas no chão. Certamente, já procuravam por mim. Eu estava encurralado: pela janela, vi cercas, armas, guaritas e soldados, que vigiavam cada canto. E foi assim que eu acordei, sabendo que não havia escapatória a não ser acordar.

Acordado, sou alertado pela razão de que o nazismo não venceu a guerra. Contudo, no fundo do meu ser desperto, a dúvida e o medo permanecem...

(imagem: frase inscrita na entrada de vários campos de concentração - nesse caso, Dachau - que pode ser traduzida como "o trabalho liberta" e que diz muito sobre os ideais nazistas e sobre o quanto eles estão mortos ou não)

domingo, 14 de outubro de 2007

Introdução à teoria das cordas

Fui a Cuiabá e encontrei lá algumas pessoas muito interessantes. Também ouvi muita coisa que me fez pensar. Foi, no geral, uma boa visita.

As refeições no hotel eram enormes, monstruosas. Nunca consegui comer tudo que me era oferecido. No último almoço, já em uma visita a Chapada dos Guimarães, comentei que, além de não comer muito, eu não costumava fazer três refeições. Um rapaz, filho de um ótimo amigo, comentou que minhas refeições, não importa quantas fossem, deviam ser apenas uma, como as dimensões do espaço na teoria de cordas que, mesmo sendo muitas, se 'enrolam' para virar apenas três.

Se ele fosse meu aluno, e estivesse ao meu alcance, eu lhe daria nota nove e meio por essa analogia. O dez eu guardo para quem encontrar, em mim, as possibilidades que jazem escondidas.

(imagem: espaço de Calabi-Yau)

Evolução


Um macaco morto mostrou-me seus dentes. E eu vi que, intrinsecamente, não há muita diferença entre ele, eu e todos os outros homens, exceto pelo fato de que, hoje, eu acho que posso me mover.

(imagem: um macaco que fotografei numa visita monitorada aos bastidores do zoológico)

A economia da natureza


Estive no zoológico de São Paulo, com um grupo de alunos que querem fazer biologia. Jovens sortudos, esses: tem o mundo e vontade de viver nele, coisas que eu não possuo e que, provavelmente, invejo.

Invejo especialmente o desejo deles de fazer biologia: se eu, na idade deles, tivesse sido chamado pelo canto dessa sereia em particular, meu rumo no oceano seria outro, muito diferente do atual, que me trouxe a uma ilha deserta, repleta de equações e imposições de produtividade.

Eu não queria nada disso. A única produtividade que eu almejo é a da natureza, de cada ser vivo, que eu aprendi da biologia: produzir e sobreviver tendo, mesmo que inconscientemente, as gerações futuras como objetivo último. Eu não sou nada: a humanidade talvez seja. Meus alunos tem o presente e, espero, serão o futuro, ao passo que eu, eu já sou o passado.

(imagem: foto tirada por mim no zoológico, em que pus uma haste de madeira para encobrir sutilmente o que as girafas faziam)

domingo, 7 de outubro de 2007

A algaravia


Minha semana foi longa e ainda não acabou, mas outra deve começar: estou ainda à espera dela.

Eu ia a Cuiabá pela manhã, mas por conta de uma prova de atletismo não divulgada em lugar algum, a Avenida Aricanduva foi fechada, e eu cheguei atrasado no aeroporto, perdi o vôo. E, assim, o domingo se arrasta em direção ao meu novo horário - 00:15.

Tive mil reuniões nestes últimos dias. Ouvi muitas reclamações, justas e injustas, com pedidos dignos da Rainha de Copas - cortem as cabeças! - e de tudo só me restou, como um rótulo na memória, uma palavra: algaravia. Na reunião final, na sexta-feira, ninguém perdeu a cabeça, especialmente os reis e rainhas que lá estavam.

Muitos de meus contemporâneos são como crianças ou velhos mimados ou deslumbrados; é provável que eu também. Mas eu, ao menos, tento disfarçar minha idade. Acho que é por isso que vivo quase sempre só, como um exilado, que fala uma língua que não é a sua, e nem a dos que o rodeiam...

(imagem: selo britânico de 1952, em homenagem à Rainha)

A educação pela pedra

Há um poema de João Cabral de Melo Neto que me persegue:
"Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos."

Não sou um galo. Não trago comigo a força de tecer as manhãs. Por mais que eu me esforce, do meu trabalho de tecelão só saem teias frágeis, que não apanham nada, nem mesmo orvalho.
Mas, mesmo assim, ainda acredito que a manhã vêm, e que o sol brilhará até mesmo para mim.

Por favor, não me destruam essa ilusão.



(imagem: um galo)

sábado, 6 de outubro de 2007

As ruínas circulares


Às vezes, viajo por contas de congressos científicos ou por convites para seminários ou cursos. Às vezes vou longe, como esta semana, quando deverei ir a Cuiabá, mas também passeio ao redor de casa, indo a cidades como Águas de Lindóia e Campos do Jordão.

Por conta de um dessas viagens de trabalho, estive no ano passado em Atibaia. Ao lado do hotel sofisticado, onde participei de um congresso de um astronomia, me chamou a atenção a existência de um campo aberto com um conjunto de ruínas, muito próximas do prédio principal, a uns 500 metros do estacionamento. Fui até lá, e o clima do dia, sombrio, só contribuiu para ampliar a aura de desolação do local, onde havia sido uma casa, provavelmente com uma família: havia restos de brinquedos, e de muitas coisas mais. Na frente – ou seriam os fundos? – da casa uma bela árvore tinha ainda um balanço artesanal, de madeira e cordas. A casa aparentava ter sido destruída parcialmente apenas para que ninguém morasse nela. Imagino que o terreno devia ter sido comprado recentemente pelo hotel, e que qualquer que fosse o seu uso posterior, naquele momento o lote devia apenas ser esvaziado e esquecido.

De qualquer modo, ali, sozinho, por entre telhas quebradas, cacos de louças, restos de móveis e barro, com um vento gelado a trazer nuvens escuras, não pude deixar de sentir o que é a impermanência pregada pelos budistas. Toda vida ou construção, por mais sólida e complexa, é no fundo apenas uma mandala, pronta para ser destruída por um sopro.

À noite, no jantar, havia arroz com cogumelos. Mais tarde, sozinho em meu quarto, vomitei-o todo na pia do banheiro. E pelo dia seguinte todo não consegui sair do quarto, doente, com febre em cada fibra do corpo, recebendo de novo, por linhas tortas, uma humilhante lição de humildade.

Fui embora um dia depois, assim que consegui dirigir, com a nítida impressão de que um dos mais importantes seminários que aconteceram no congresso foi dado a mim, e a mim somente, em silêncio, pelas ruínas e pela minha experiência com a comida. No retorno a São Paulo, me peguei em plena Fernão Dias pensando que nunca se sabe o que se vai ver quando se viaja...

(imagem: mandala budista)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O retrato de uma senhora


Enquanto eu estava em Lindóia, vi aparecer na TV o retrato falado de um maníaco que teria molestado crianças nalguma mata na periferia de São Paulo. E fiquei em dúvida se eu conseguiria descrever tão bem alguns rostos que vi, em outros tempos.

Uma ocasião em especial me vem à memória, com um rosto em destaque. E, pensando bem, a minha descrição desse rosto não seria fiel: o que eu vi nesse caso – e vejo ainda, às vezes – é muito mais que um rosto, muito mais que uma pessoa. O que eu vi, e me lembro bem, é mais do que uma imagem, é um ideal, e não tem tradução visual... O que eu vi, em uma face alheia, acho que não existe a não ser nos meus olhos e, especialmente, nos meus sonhos.

O que eu vi? Talvez a face de um raio de luz, nos olhos de uma moça.

(imagem: um olho, espero que não tão defeituoso como os meus)

O que é filosofia


Em Lindóia, na semana passada, me vi apenas em outra cidade, em outro congresso científico, onde a minha inutilidade transparece: eu não devia estar aqui. Meu trabalho é vazio, não tenho nada a acrescentar a esse mundo.

Daqui a poucos anos, daqui a um dia, acabarei tendo o destino igual ao da teoria dos laços de éter ou do calórico: eu, como essas teorias, não explico nada.

E afinal para que serve um homem? É só isso que sou, mais um homem numa multidão deles, criando palavras e teorias onde já há uma multidão delas. Melhor seria para todos, especialmente eu, se eu fosse um passarinho, como os pardais simplórios de minha rua, que não sabem teorizar, mas vivem, por entre os homens e por entre as nuvens.

(imagem: um pardal)

O fim da infância

Um amigo do Rio de Janeiro, professor como eu, veio comentar que está espantado com a ausência de sonhos de seus alunos, de como eles vivem apenas para si mesmos e seus desejos individuais. Como exemplo, ele contou que enviou a eles um pedido de sugestões de livros para a biblioteca da instituição onde eles estudam, pedido esse que não recebeu resposta de nenhum deles. Eu lhe disse apenas que esse é um sinal dos tempos em que vivemos, e ele não gostou dessa resposta.

Mal sabe ele que eu também não tenho mais sonhos – para manter a sanidade fui obrigado a abdicar deles. Vivo cada dia empurrando-o com a barriga, esperando ansiosamente descobrir nalgum deles que é, afinal, o último.

(imagem: capa do disco "Obscured by Clouds", do grupo Pink Floyd)

O velho e o mar


Sou um pescador: pesco nas águas sujas e muito poluídas dos meus pensamentos o que ainda sobrou vivo. E estas linhas, se você ainda não percebeu, são somente um aquário, onde transplanto e exponho o que apanhei.

(imagem: um aquário público)

Por enquanto


Abrindo uma caixa atrás da outra, encontrei uma antiga lata de metal, que veio com uma coleção de discos do Legião Urbana, ainda com a etiqueta de preço da Mesbla.

Dentre as muitas dessa coleção, gosto mais de uma música, “Metal contra as nuvens”, em que uma frase diz “sou metal, raio relâmpago e trovão, sou metal, sou o ouro em seu brasão, sou metal, me sabe o fogo do dragão”... Não, metal eu não sou, nem relâmpago ou trovão, tampouco dragão ou fogo. Porém, acho que contra as nuvens eu sou, só que muito mais leve que elas, talvez algo como o sol vindo em feixes por entre a neblina da manhã.

É isso, sim: quase não existo, e só existo por uns instantes, como hoje, quando dói saber e ver a beleza que quase não acredito existir... “Tudo passa, tudo passará”, me repete a música, e “teremos histórias bonitas para contar”. Não, não teremos: eu terei as minhas estórias, a maioria delas só imaginada, e o resto fica por conta do vento.

(imagem: o sol através das nuvens, da Wikipedia, como sempre)

O caso da borboleta Atíria

Fiquei por alguns dias no limbo, sem internet, por ter mudado de casa. Minha casa nova não é nova, mas é minha casa, por ora cheia de caixas. Muitas coisas não sei ainda aonde estão. E mesmo meu caminho ainda não sei qual é.

Mas espero que a borboleta que me rodeou ontem à tarde, no pequeno canteiro de flores que tenho, seja um bom sinal, tão bom quanto os livros de minha infância que reencontrei ao abrir uma caixa qualquer.

(imagem: borboleta parecida com que a vi, na Wikipedia)