Curioso como o mundo é feito de coincidências. Alguém mais místico certamente retrucaria que não há coincidências. Eu, mesmo não sendo místico, vejo, às vezes, que há mais coisas que a razão pura e simples.
Por exemplo, eu decidi escrever por razões que não tem nada a ver com a razão. E escolhi um nome racional para o meu "projeto": Atlas. De onde veio esse nome?
Na mitologia grega Atlas era um titã que participou da uma tentativa frustrada de subjugar os deuses do Olimpo. Cada titã teve o seu castigo, dado por Zeus. Para Atlas, a punição foi a de sustentar o céu em suas costas, eternamente.
No entanto, para mim Atlas é mais que uma figura de inúmeras versões de lendas gregas: atlas é uma - a primeira - das sete vértebras da coluna cervical, aquela que sustenta o crânio. Aprendi isso em aulas de anatomia que tive há muitos anos atrás, na mesma época em que descobria as estrelas do céu e, assim, a palavra "atlas" sempre ficou com esse significado especial para mim.
No senso comum, entretanto, um atlas é um livro cheio de mapas. Eu me lembro bem do primeiro que tive, quando eu mal sabia ler: na capa havia uma belíssima imagem da Terra, vista da Lua; em cada página um pedaço do mundo, onde ainda se encontrava o Estado da Guanabara.
A infância e a juventude passaram, ficou a vontade de escrever, num sentido literário: inumeráveis páginas foram gastas para que eu exercitasse os músculos da escrita. Quantas árvores ajudei a destruir inutilmente com palavras perdidas... De qualquer modo, eu sempre imaginei que o primeiro filho literário que eu tivesse se chamaria "atlas". E só agora, depois de anos sem direção, ao sabor dos ventos, criei coragem para finalmente criar um único personagem, que sou eu e não sou.
Meu alter-ego literário praticamente não tem interlocutores: o mundo é só ele. Logo, o único mundo que ele pode descrever é o de seus pensamentos, o único atlas que ele pode escrever é o de suas viagens imaginárias, obtidas de mim. Diferente dele, porém, eu, que vivo no mundo real, convivo com outros protagonistas. Eu tenho um emprego, uma família, mulher e filhos. Ele só existe nas palavras que eu crio. E eu, às vezes, creio que também eu sou ficção...
Na semana em que, chegando em casa de viagem, decidi invocar as musas e libertar as palavras que eu mantinha guardadas, encontrei minha filha brincando com uma coleção de fascículos que comecei a comprar para ela, antes de viajar, em uma banca de revistas. No primeiro fascículo, lançado antes de minha viagem, veio como um brinde um crânio. No segundo, lançado depois de minha decisão, e que só vi bem depois de começar a escrever, vieram o cérebro e o começo da coluna: atlas estava lá, visível, sustenatdo o crânio, acima de áxis e mais um punhado de vértebras.
Se eu fosse místico, diria que nada é coincidência. No entanto, eu, não não sou místico: creio que apenas há mais mar do que terra, com profundezas que escondem mais do que qualquer escritor pode sonhar, com mais do que palavras podem descrever. Por isso mesmo, navegar é preciso, e mapear talvez seja mais.
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