A cidade de Campos do Jordão sempre me pareceu artificial demais: uma cidade de casas de bonecas, um parque temático kitsch para adultos com dinheiro, uma cópia barata de algumas fotos turísticas da Europa... Já estive aqui várias vezes e nada aqui me seduz. Mas eu continuo vindo e sendo seduzido, às vezes, pelo que não existe. No ano passado, fiquei neste mesmo hotel. As pessoas ao meu redor eram basicamente as mesmas, neste mesmo congresso. A mesma paisagem...
Eu me explico: minha rotina consiste em transformar a tudo e a todos em paisagem. Nisto está minha segurança emocional, só assim navego em águas tranqüilas, sem enjôos. Mas às vezes - às vezes - um pequeno reflexo na água me acha na amurada, e eu por um instante me lembro de que o mar é mais do que uma paisagem monótona, de que há profundezas e ondas, e de que eu deveria, ao menos por segurança, aprender a nadar. Tudo, aliás, se resume a ter segurança: as sereias e os leviatãs, os golfinhos e baleias, as focas, os cardumes e gaivotas, o azul da água, o azul do céu, a vida e a cor dos corais, tudo no mar me atrai demais e eu não sei se sei nadar. Mais seguro é ignorar o vento e as marés e apenas navegar como um navio-fantasma, sem fazer barulho ou marola, indo apenas, precisamente, a lugar nenhum.
Nas salas e corredores deste hotel eu encontro várias pessoas, algumas cujo nome e forma eu associo, e algumas que me parecem interessantes demais. Em nome da segurança, porém, não posso permitir que eu as veja e, assim, eu as transformo em nada, me tornando num fantasma que vaga por entre salas e corredores sem existir realmente, sem carne nem osso, preso a minha carne e meus ossos, incapaz de atravessar até mesmo paredes que não existem.
No ano passado, entretanto, eu tive uma visão no auditório do hotel. O que eu vi, não sei descrever ao certo, pois minha caneta, para onde corri logo em seguida, não soube escrever palavras que fizessem sentido. Tampouco a tecnologia de um computador pode me ajudar. Só hoje, passado um ano, de volta ao mesmo auditório, é que olho para a minha caneta e entendo que posso dizer que o que vi era um diamante, aqui, na mesma sala em que estive há pouco.
Por um instante, absurdo de tão longo, um raio de luz bateu nesse diamante e chegou a mim, me fazendo lembrar que eu tinha - ainda os tenho - olhos. Mas isso não foi o principal: luz e diamante se fundiram e formaram umser que veio até onde eu estava. Tal movimento me pegou completamente de surpresa, pois eu nunca acreditei que uma coisa tão repleta de luz e graça pudesse se mover em minha direção. Os opostos se repelem, e eu, por analogia, deveria afastar todo movimento, toda a graça repelida pela minha desgraça. No entanto, além de se mover minha direção e chegar até onde eu estava, a jóia - como pode um mineral ser tão etéreo? - falou comigo, e sua voz era doce.
Seus lábios eram de cristal... vermelhos? Seus lábios eram som mas o som era cristal. O importante, porém, era que seus lábios eram. Eram lábios! Lábios que me absorveram por completo: eu não via, eu não ouvia, eu não existia, apenas aqueles lábios iluminados eram o universo inteiro, só eles respiravam e se moviam... Havia mais, é claro, mas eu não podia perceber muito além: a visão preenchia meus sentidos todos, sinesteticamente.
E tudo durou um segundo, uma miragem que se desfez no próximo movimento. Uma miragem que, ainda que desfeita, permaneceu, imperturbada, para me assombrar com sua perfeição irreal. Acho que posso dizer que vi um anjo: a analogia, ainda que banal, é essa. Eu vi um anjo. E sei que não era um anjo. Era outra coisa, sólida e real, e muito mais angelical que um anjo. Sem milagres, sem divindade: um anjo real, feito de luz e carne.
Naquele instante meus olhos ficaram diferentes. Fiquei mais cego e, pior, passei a temer a reaparição do que eu tinha visto. Passei a andar escondido por entre os corredores e salões, o olhar ao mesmo tempo fugindo e buscando o que eu vi, fingindo que não estava buscando nada, que nada tinha acontecido. E tudo isso, essa visão, há um ano atrás, me fez lembrar de um episódio que vivi quando eu era vivo, jovem de corpo e alma, o que não sou mais, há muito tempo. Uma lembrança como a desperta por um olfato, vaga e ao mesmo tempo aguda.
Jovem, eu era, é claro, puro sentimento, meu coração parecendo ser a fonte de meus pensamentos, com meu cérebro sendo apenas uma máquina para resfriar meu sangue. Eu amava, e voltava da casa de minha amada, a quem eu tinha visto por pouco tempo, e que não me amava. Atravessando uma praça eu senti, na mistura entre o sol e o céu e areia do chão, um poema, que não peguei. Vi suas faces e senti uma euforia imensa ao sentir o brilho do sol nele.
Vi e dancei com as palavras que eram o poema, mas não o peguei, apenas o senti. E naquele momento, naquelas palavras que nunca foram escritas, fui eu o sol. Um sol imenso, muito maior do que qualquer um que exista de verdade. E fui eu um brilhante e um anjo, só que não havia ninguém para ver a minha silenciosa luminosidade. Tal momento foi só local e não se propagou, seu potencial em transformar ou iluminar a realidade não se efetivou: só eu vi o que vi, só eu senti o que eu poderia ter sido e nunca fui.
Na noite passada, chovia. Eu, antes de me recolher ao quarto para dormir, fiquei conversando com algumas pessoas no saguão do hotel. Inquietos, presos pela chuva, meus colegas de hospedagem buscavam o que fazer. Por alguns instantes parei na entrada do hotel, de frente para um outro homem. Por nós - no meio de nós dois - passou uma moça belíssima, vestindo uma blusa, acho que alaranjada, que deixava ver um dos ombros. Meu companheiro imediatamente a seguiu com o olhar, medindo-a como se eu não estivesse lá, através de mim, até ela sumir no outro prédio, disparando em seguida algo como "sabe quem é? tem namorado?" E a comparação, para mim, foi imediata: foi isso, minha condição de homem, que me fez ver o que eu vi?
Sei que foi o mesmo. Mas foi muito mais. Admirar a beleza de um céu estrelado numa cidade pequena é fácil, mas vê-lo como um Van Gogh é muito mais complicado. Uma foto do céu e um quadro de uma noite estrelada de Van Gogh (uma imagem de um quadro assim aparece no lugar da foto de um amigo meu no Orkut) têm ambos a mesma origem, mas são coisas completamente distintas. A beleza radiante da moça que passou por mim, à noite - e que eu fingi não ver - e a beleza do anjo-diamante que eu vi podem ter origens parecidas, ambas fundadas no mundo, mas uma é real, palpável, desejável no sentido mais instintivo, enquanto a outra é quase ilusória, diáfana, assustadora de tão bela. É como a primeira visão que tive da Via Láctea: foi tão marcante, que ainda me lembro dela, enquanto não me lembro, por exemplo, da primeira vez que me percebi apreciando a beleza de alguma mulher. As mulheres e as estrelas ainda estão por aí para serem admiradas nas infinitas noites do mundo, e às vezes elas me lembram disso, mas não foi isso que eu vi: eu vi o infinito numa noite, e a vida, personificada como um brilhante, numa sala.
O brilho do diamante do ano passado, me fazendo lembrar que diamantes existem, parece ter sido como uma faísca que se juntou a outras para acordar uma fênix que não sabia que podia renascer. Há um ano atrás sentei-me à beira da cama (esta mesma de hoje?) e escrevi no mesmo computador de hoje uma carta que joguei ao mar, descrevendo o que quando jovem presenciei. Diamantes são eternos, dizem: porque não podem ser eternas as visões de êxtase que eles provocam, ainda que representadas por um punhado de palavras, ainda que não tenham sido nada real de fato?
Desde então, descobri que é fácil criar, em silêncio, um diálogo entre o jovem tolo que fui e o quase-velho, ainda tolo, que sou, vendo e revendo onde houve e onde podem haver anjos e luz, estrelas e pedras preciosas, construindo castelos de papel, mesmo que por ora preso a um roteiro que passa todo ano nesta mesma cidade de fantasmas tuberculosos e clima sem-graça.
Minha vida, hoje, é só isso, papel, computadores, palavras e equações e, de quando em quando, viagens. Mas eu, do alto de minha falta de sabedoria, sei que não é. É mais. Há muito mais. Mesmo sem ter ido lá, sei que há uma Europa real, sem casas de bonecas. Sei que há castelos que não são de papel: já visitei alguns. Sei que eu, embora mera alma penada, ao mesmo tempo espantalho, leão e robô do mundo de Oz, eu existo e sou real, muitas vezes kitsch, mas ainda assim autêntico, não apenas uma cópia barata de algum outro lugar. E sei, sem os ter tocado no mundo real, que há anjos.
Eu, não tão afortunado quanto qualquer anjo, não sou eterno, e acredito que as marcas que deixarei no mundo serão, provavelmente, tão fracas quanto as deixadas por uma miragem no deserto, mas posso - devo - nem que seja por uns breves instantes, brilhar, ou ao menos espalhar o brilho que encontro, ainda que só em pensamentos como os que jogo ao mar, em alguns dias. Assim, em tempos futuros, de milhões de garrafas, alguma restará provando ao meu espírito, e - quem sabe? - a algum improvável arqueólogo de almas, que eu existi.
E se, por acaso, alguém mais encontar minhas frases, ainda que desconexas e/ou de gosto duvidoso, ficará o agradável mistério de saber que diamante vivo, afinal, era esse que brilhava na sala de um hotel de Campos de Jordão, e que me fez iniciar, finalmente, um diário das minhas jornadas pelo mundo.
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