domingo, 2 de setembro de 2007
O mito de Sísifo
Causou algum celeuma esta semana a notícia de que Madre Teresa de Calcutá teria tido crises de fé. Em diferentes cartas ela teria expresso de diferentes formas um mesmo desespero: "Por favor reze especialmente por mim para que não estrague a obra d'Ele e que Nosso Senhor possa se mostrar - pois há uma escuridão tão terrível dentro de mim, como se tudo estivesse morto".
Passei metade do sábado num hospital público, acompanhando uma moça boliviana de 18 anos que, sem quase falar português, e logo depois de se tornar uma mãe solteira, precisou ser internada com uma infecção no útero, que ela teimava em esconder, tal como tinha escondido sua gravidez.
Não, a iniciativa de levar a moça ao hospital não foi minha. Eu apenas servi de motorista. Achei um gesto bonito que alguém se preocupasse com ela, e acompanhei a empreitada. Mas...
Ajudar seres humanos doentes é como enxugar gelo. É um trabalho interminável. Nas quase 6 horas que fiquei no hospital, entraram zilhares de pessoas com os mais diferentes problemas: acidentes, brigas, doenças diversas.
Não creio que a moça boliviana, quando curada, vá se tornar uma pessoa que mais ajude a resolver do que a causar dificuldades. Não vejo na maioria da pessoas a capacidade de viver sem dificuldades. E acho que Madre Teresa de Calcutá, cercada pela pobreza de Calcutá, deve ter sentido isso claramente.
Ajudar as pessoas é pior que enxugar gelo: é como limpar com água as feridas de alguém com hanseníase - não resolve nada. É como o trabalho do titã Sísifo, que é condenado pelos deuses do Olimpo a eternamente rolar para o alto de uma montanha uma rocha que, ao chegar lá, rola para baixo novamente, obrigando-o a recomeçar.
A vida humana é absurda, e o único assunto filosófico sério é o suicídio. E o heroísmo seria, vendo o absurdo, continuar vivendo. Não, não é heroísmo, é simplesmente estupidez, ou falta de opções, ou pior, instinto de sobrevivência - a natureza sempre fala mais alto. E, nós, homens, proliferamos como moscas...
"Et c'est bien là le génie : l'intelligence qui connaît ses frontières."
(imagem: Sísifo, por Ticiano, século XVI)
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2 comentários:
Caríssimo,
acho que vc está rondando o "Problema do Mal". Acho que é sob essa perspectiva que a gente consegue entender um pouco melhor o desapego do Eu pregado pelos Budistas, ou o estratagema de evitar a dor dos Epicuristas.
No final de semana li o "Desespero Humano" de Kierkegaard, que dá vazão a um cristianismo sombrio, pessimista. Não me satisfez.
A única coisa que melhorou meu humor foi um documentário (na TV Senado) sobre o "Teatro da Arte" de Moscou. Lá se falou bastante sobre Tchecov: que, na qualidade de médico, atendia de graça camponeses carentes; e que, ademais, criava aquela literatura simplesmente maravilhosa. Aquilo é que era homem!
Apesar da ineficácia, acho que vc fez bem em ajudar a tal garota. Meça sua ação pelo imperativo categórico (aja de modo que sua ação possa ser uma lei geral). Se todos se dispusesem a levar estranhos ao hospital, haveria menos desamparo e insensibilidade ao sofrimento alheio. Sua ação isolada não adianta de nada, mas está em conformidade com uma vida mais solidária, mais justa.
Você parece que leu Camus, eu ainda não, tenho que procurar...
Eu não concordo com vc, e vou dizer de um jeito de quem não esteve no hospital...:Vc não ajudou a garota para que ela "se tornasse uma pessoa melhor, crecesse, aprendesse, fosse feliz". Vc fez a ação por vc mesmo, para se sentir útil em ajudar uma necessitada. Vc decide se repete coisas como estas ou não. Mas achar que pode mudar a vida dos outros assim é preciso ser um cristão caridoso enrustido.Vc não pode mudar o mundo, vc apenas participa dele. E para entender isto é necessário uma especie de humildade. Se eu ajudo alguém, eu faço isto por mim, não para me sentir melhor, mas é porque eu faço, simplesmente. Sísifo está cego no penhasco, ele leva a pedra porque é o que ele faz no inferno, e só. Assim eu penso, peco desculpas por meu tom prepotente, estou com ressaca e meu fígado está aquela beleza.
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