quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Mother Night


Uma vez, em uma outra vida em que fui estudante de letras na USP, me pediram para fazer um trabalho sobre poesia e cinema, e curioso que eu era fui ciscando, ciscando, até chegar a Kurt Vonnegut, que me apresentou Tiglath-pileser, num diálogo travado entre o personagem principal do livro "Mother Night", preso por crimes de guerra, e um guarda, que serve de carcereiro (a tradução é minha):

"Arnold está estudando para ser um advogado. A vocação de Arnold e de seu pai, um armeiro, é arqueologia. Pai e filho passam a maior parte de seu tempo livre escavando as ruínas de Hazor. Eles trabalham sob a direção de Yigael Yadin, que foi o Chefe de Estado-Maior do Exército Israelense durante a guerra com os estados árabes.

Assim seja.

Hazor, Arnold me diz, era uma cidade cananéia no norte da Palestina que existiu por volta de mil e novecentos anos antes de Cristo. Cerca de mil e quatrocentos anos antes de Cristo, Arnold me diz, um exército Israelita capturou Hazor, matou todos os quarenta mil habitantes, e queimou a cidade.

"Salomão reconstruiu a cidade," disse Arnold, "mas em 732 A.C. Tiglath-pileser o Terceiro a queimou novamente."

"Quem?" eu disse.

"Tiglath-pileser o Terceiro," disse Arnold. "O assírio," ele disse, dando um cutucão na minha memória.

"Oh," eu disse. "Esse Tiglath-pileser."

"Você age como se nunca tivesse ouvido falar dele," disse Arnold.

"Nunca ouvi," eu disse. Dei de ombros humildemente. "Acho que isso é bem horrível."

"Bem --" disse Arnold, dando-me um olhar professoral, "parece que ele é realmente alguém que todo mundo deveria conhecer. Ele foi provavelmente o homem mais memorável que os assírios produziram."

"Oh," eu disse.

"Trarei um livro sobre ele, se você quiser," disse Arnold.

"Isso seria gentil da sua parte," eu disse. "Talvez eu consiga pensar sobre assírios memoráveis mais tarde. Nesse momento minha mente está bem ocupada com memoráveis alemães."

"Como quem?" ele disse.

"Oh, eu tenho pensado bastante ultimamente sobre meu antigo chefe, Paul Joseph Goebbels," eu disse.

Arnold pôs um vazio no rosto. "Quem?" ele disse.

E eu senti o pó da Terra Sagrada rastejando para me enterrar, sentindo quão grossa seria a coberta de poeira e pedras que um dia eu iria vestir. Eu senti trinta ou quarenta pés de cidades arruinadas sobre mim; abaixo de mim alguns restos de cozinha primitivos, um templo ou dois -- e então --

Tiglath-pileser o Terceiro."


Vendo uma euforia dominar o mundo em relação a uma eleição em um país distante, sinto o mesmo peso, de metros de cidades em ruínas sobre mim, de templos e nomes e pessoas que deviam ser importantes, e sinto que, apesar disso, amanhã ainda terei que acordar e me alimentar e ir ao meu trabalho, onde outras faces sem nome me encararão o dia todo...

Nem tão surpreso, não posso deixar de notar que o preso - e o peso - sou eu.

(imagem: um impressionante "touro alado assírio" que eu tive o prazer de ver no Louvre, em Paris)

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