segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Paraíso Perdido


Acordei, hoje, sonhando que estava de volta ao ensino médio, em uma esola pública. Meio que aturdido pelo sonho, fiquei na cama, antes de levantar, pensando na escola pública e nos alunos que saem dela hoje. E me lembrei de minha infância, passada em escolas públicas.

Lembrei de que tive bons professores - uma de minhas professoras de geografia, por exemplo, era esposa de um escritor famoso, J.C. Marinho Silva, autor de "O gênio do crime", e nos contava de suas viagens à Europa. Outra, professora de química, era esposa de um gerente de banco - na época cargo de muito respeito - e era o exemplo mais vívido que eu tinha de uma "dama". Minha professora de 4a. série nos ensinava canções em francês - não me esqueço do "Frère Jacques, dormez-vous? Sonnez les matines..." E assim vai. Hoje, acho que não há nada parecido nas escolas públicas: a classe média não está mais lá.

Em meu tempo de estudante, o sonho não era estudar num colégio particular, mas no principal colégio público, no centro da cidade (em Guarulhos, o Conselheiro Crispiniano, em Santo André, o Américo Brasiliense, em Mauá, o "Viscondão", todos colégios com vestibulinhos disputados), ou em um colégio técnico, também público, como as ETEs e escolas técnicas federais. Hoje, quem pode paga para separar seus filhos da pobreza (eu, inclusive). As escolas públicas ficaram para os pobres, um reduto de quem não tem recursos e status.

Em meu tempo de estudante, eu ia com meu pai ao centro da cidade de São Paulo, para me maravilhar com as vitrines do Mappin: lá vi, pela primeira vez, quando tinha uns dez anos, uma raquete de tênis - e me deslumbrei! O centro velho de São Paulo tinha muitas coisas boas além do Mappin: a Mesbla, da 24 de maio, as Grandes Galerias, a Ultralar, onde comprei, adolescente, meu Sgt . Pepper's, em LP, a Baratos Afins. Hoje, só há camelôs e as Casas Bahia, e a classe média vai aos "shoppings". O centro velho foi abandonado e virou uma sombra do que já foi.

Em meu tempo de estudante os cursos de licenciatura eram feitos junto com o bacharelado. No IFUSP, onde me graduei, eu tive a opção de cursar as disciplinas da educação junto com as do bacharelado em física. Minha turma foi a última: daí em diante houve uma completa separação dos currículos, e já no vestibular os alunos deviam optar entre licenciatura ou bacharelado, sem intersecção. No final da graduação, fui monitor de uma dessass turmas de licenciatura: só alunos vindos de escolas públicas, de bairros de periferia, com sérias falhas na formação. A classe média não estava lá.

Em meu tempo de estudante, não havia TV paga - a TV era a mesma para todos, ricos ou pobres. Havia programas como Cosmos e Jacques Cousteau para todos. Havia o Chacrinha, é claro, mas não havia o culto da celebridade vazia, como acontece nos tempos atuais, com o Big Brother. Uma celebridade que nunca esqueci , da TV, foi o Mequinho: eu pedi e ganhei no Natal um jogo de xadrez com a marca dele, fabricado pela Gulliver. Onde estão os Mequinhos de hoje? (O Estadão publicava uma coluna de xadrez.) Hoje, a TV aberta é refúgio da pobreza, voltada para ela: a classe média não está lá.

É como se nossa sociedade tivesse se separado. Os ricos - às vezes nem tanto - criaram seus refúgios feudais: condomínios fechados, escolas particulares, coisas como a Daslu, canais de TV particulares, fechados. E os pobres, de fora dessses castelos, ficaram por conta própria, recebendo esmolas e migalhas. Uma visão sombria, provavelmente simplista, mas acho que com um fundo de verdade. Me levantei entristecido.

No café da manhã, ao pegar o jornal, vi que a manchete principal era "Desigualdade educacional no Brasil é ainda maior que a de renda". Juro que eu não sabia.

(imagem: "A queda de Lúcifer", ilustração de Gustave Doré para o livro O Paraíso Perdido de John Milton; a frase famosa desse livro é "Better to reign in Hell, than serve in Heaven" (melhor reinar no inferno, do que servir no paraíso) - vi isso quando era criança, na TV aberta.)

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