terça-feira, 28 de agosto de 2007

Os princípios da psicologia

É, eu já viajei um bocadinho por aí, conhecendo lugares, encontrando pessoas. Claro que nessas viagens vez por outra encontrava - ainda encontro - viajantes como eu. Um deles, que muito me surpreendeu, era um americano chamado William James.

William James veio ao Brasil quando ainda tinha 23 anos, é o que me dizem. Passeou pela Amazônia, onde se encantou com uma moça de lá, que ele descreveu como "minha rainha da floresta, minha flor do trópico". E isso era no século XIX! Ao que me parece, é coisa bem típica de gringos essa de se encantar com as mulheres brasileiras, e independe da época...

Mas não foi o 'turista' William James que me encantou, e sim o escritor, ou filósofo, ou psicólogo, 'inventor' do fluxo de consciência. Eis um trecho de seu "Pragmatismo":

"Nego firmemente que a nossa experiência humana seja a mais elevada forma de experiência existente no universo. Creio, isso sim, que a nossa relação com todo o universo é praticamente a mesma que os nossos caninos e felinos de estimação mantêm com a vida humana. Eles habitam nossas salas de estar e bibliotecas. Participam de cenas de cuja significância não fazem a mínima idéia. Eles são apenas tangentes a curvas da história, cujos começo, fim e formas passam inteiramente fora de seu alcance. E assim somos tangentes à vida mais ampla das coisas."

Não me surpreende que poucos o conheçam: como ele ousou comparar-nos a cães e gatos? Eu, que nunca estudei filosofia ou psicologia a sério, não ouso, porém, discordar dele. Prefiro uma frase do irmão dele, Henry James, que como escritor 'psicológico', devia saber do seu ofício: "gatos e macacos, macacos e gatos - toda a vida humana está aí" (a frase aparece em "A madona do futuro"). Mas eu sinceramente acho que nos falta a graça dos gatos...

(imagem: Gato de Cheshire, ilustração de John Tenniel, para "Alice no País das Maravilhas")

Memórias póstumas de Brás Cubas

Depois de uma seqüência de dias quentes e secos, vi hoje a notícia de que nesse mês de agosto choveu apenas 2% da média de chuva medida no mesmo mês em outros anos. E isso me fez lembrar de quando morri. Era setembro ou começo de outubro, o ano era de copa do mundo, e não chovia forte há dois meses. O clima estava seco, tenso, as pessoas cheias de problemas respiratórios, as represas ameçando parar de fornecer água para as torneiras.

Me lembro bem do clima da época, pois foi quando eu e ela - quem era ela não importa - tivemos uma discussão forte, imensa talvez por ser a primeira. Ela saiu intempestivamente do apartamento para a rua, e imediatamente começou a chover, uma tempestade surpreendentemente intensa, como há muito os paulistanos esperavam.

Foi também a nossa última discussão. Não consegui dormir naquela noite. Fiquei na cama semi-acordado, com a nítida impressão de que havia uma equipe de cirurgiões ao meu redor, arrancando cuidadosamente meu coração. Logo soube, porém, que eles haviam falhado: eu morri naquela noite, e meu corpo - sem cicatrizes - é testemunha disso. Nada demais, entretanto: morri outras vezes depois, é claro, e hoje só espero não morrer mais por ter descoberto que para morrer é preciso estar vivo.

Tempora mutantur, seja lá o que isso for, nos et mutamur in illis.

(imagem: Viajantes surpreendidos pela chuva, de Hiroshige, artista japonês do século XIX)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A escalada do homem

Ao ir buscar o jornal, hoje pela manhã, me surpreendeu a imagem na capa de uma mulher semi-nua, típica de revistas masculinas, e algo não esperado num jornal sério como "A Folha de São Paulo", tão sério que tem apenas apenas uma página de ciência e um caderno inteiro, diário, de 12 páginas, chamado "dinheiro". Ao ler a descrição da foto, entendi que era isso mesmo, a notícia de que uma mulher de Brasília havia feito um ensaio para a Playboy.

Cortesãs existem desde sei lá quando: ontem mesmo, semi-adoecido em casa, vi, à tarde, num canal de filmes que acho que era o TNT ou HBO, um trecho curto de um filme, "Dangerous Beauty", cuja história se passava em algum lugar da Europa renascentista, em que uma mulher mais velha ensinava a outra mais nova as artes do amor profissional, explicando cuidadosamente como fazer uma felação.

E já que isto aqui é um blog, não custa citar que um dos blogs mais famosos do Brasil é o de uma suposta ex-garota de programa, que tem até verbete na Wikipédia.

Enfim, o que isso quer dizer? Imagine que eu seja uma moça, ou uma menina: que tipo de mensagem a sociedade está me passando? A mensagem acho que pode ser encontrada na história recente de uma bandeirinha de futebol que, afastada de sua função por ter supostamente errado, teve como caminho adequado, indicado pela sociedade, não um campo de futebol, mas sim as páginas internas da Playboy...

Vejo nisso tudo apenas manifestações claras da nossa cultura 'superior', que nos afasta dos outros animais e dos instintos ditados pela biologia. Após milhões de anos de evolução, reavaliados hoje mesmo devido à descoberta de fósseis que levam a crer que a separação entre homens e primatas não aconteceu tão recentemente quanto se pensava, nós criamos grandes cérebros e, enfim, concluo eu, chegamos ao ápice da civilização.

Na minha mesa, uma foto de Einstein, na capa de uma biografia recente, sorri para mim.

(imagem: capa da revista "The economist", de dezembro de 2005)

domingo, 19 de agosto de 2007

O macaco nu

Imagine que uma raça de extraterrestres inteligentes, com tecnologia muito mais sofisticada que a nossa atual, de alguma forma nos descubra, e que eles queiram investigar quem nós somos, antes de entrar em contato direto conosco.

Uma das possibilidades seria acompanhar, à distância, nossa transmissões de rádio e TV, que acabam escapando para o espaço. Outra possibilidade, muito mais complicada, seria 'infiltrar' alguém na Terra para investigar nossa cultura. Na verdade um alienígena disfarçado teria problemas para estudar a humanidade. Afinal, o que é melhor usar como fonte de pesquisa para se saber o que é típico da humanidade? Uma enciclopédia? Uma biblioteca? As centenas de canais de uma TV a cabo? A internet? A blogosfera?

Eu faço e acompanho pesquisas científicas, leio jornais, revistas e livros, assisto TV, ouço músicas e vasculho a internet e, somando tudo isso, a imagem que eu tenho dos seres humanos não é bela. Mas eu não saberia o que indicar a alguém que quisesse conhecer a cultura do bicho-homem.

Hoje, li no jornal "Estado de São Paulo" que somos um misto de duas espécies diferentes de símios, bonobos e chimpanzés: "chimpanzés fazem guerra; bonobos fazem sexo". E nós preferimos os dois, sexo e violência: "humanos têm um pouco dos dois - as tendências territoriais e agressivas dos chimpanzés, que muitas vezes são úteis para nossa proteção, e também uma ótima habilidade de resolver conflitos e cooperar com os outros." Fazer sexo é cooperar? Nunca pensei nisso.

Não há mesmo muita diferença entre nós e os macacos. Era isso mesmo que, na década de setenta, dizia a série de filmes "O planeta dos macacos". Somos apenas um pouco mais espertos - ou menos, dependendo de como você observa. Mas eu sonhava que podia ser mais que isso.
No entanto, para o meu desencanto, também eu gosto de ver imagens de fêmeas jovens nuas, também eu gosto de ver belas cenas de destruição, como as de "Zabriskie Point".




As estrelas nunca me pareceram tão distantes.



(imagem: placa enviada junto com a sonda Pioneer 10, objeto humano que mais longe viajou até hoje)

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O mundo assombrado pelos demônios

Eu tenho uma conta de e-mail gratuita, num grande portal da internet. Passando por lá, para ler minhas mensagens, não pude deixar de notar uma enquete que aparece no canto de um blog anunciado na página principal do portal:

"Qual é a pior frase sobre o Brasil ?
O Brasil não tem nada. O Brasil é isso aí. (FHC)
O Brasil não é um pais sério. (De Gaulle)
Desta terra eu não quero nem o pó. (Carlota Joaquina)
Esse é o lugar mais nojento em que estivemos. E o Brasil? Depois do Brasil. (Lisa e Bart Simpson)"

Não voto em nenhuma delas, mas as achei interessantes como exemplo de frases provocativas, apenas isso.

Quanto as citações de frases, procurando na internet pode-se achar milhares delas. Os textos na nternet, em geral, são isso: bricolagens de frases - e idéias - alheias. Na internet parece que muito pouco se cria, e muito se copia. Por exemplo, recebi ontem uma mensagem dizendo que no final de agosto o planeta Marte estará tão grande quanto a Lua cheia. É, obviamente, um hoax, uma notícia falsa, divulgada por parecer interessante e pelo hábito que as pessoas criaram de usar a internet para divulgar qualquer coisa, sem se preocupar muito com sua autenticidade ou verossimilhança.

Já recebi várias mensagens divulagndo boatos. Outro dia, recebi uma mensagem linda, falando sobre um pintor, Albrecht Dürer, que, sendo pobre, teria se tornado pintor graças ao sacrifício de um amigo. Achei a estória tão bonita, mas tão bonita mesmo, que me pareceu falsa. Fui investigar, usando o Google, e descobri que há pelo menos duas versões da estória - numa é um amigo que sacrifica por ele, noutra é seu irmão - mas em ambas eles vêm da pobreza e apenas Albrecht se torna um pintor. O problema é que, aparentemente, Albrecht Dürer nunca foi pobre: seu pai era um ourives que depois se tornou dono de muitas gráficas, sendo, de acordo com a Wikipedia em inglês, o mais bem-sucedido editor na Alemanha da época.

Minha investigação no Google me levou a perceber que a estória da pobreza de Dürer aparece ligada principalmente a sites de fundo religioso. Aliás, quem me mandou a estória foi uma pessoa religiosa. Faz sentido: para os religiosos é interessante ter estórias 'reais' de fundo edificante, com uma moral bonita. Já ouvi muitas dessas estórias e, como essa de Düreer, elas me parecem, hoje, bonitas demais para serem verdadeiras. Outra coisa interessante sobre os religiosos é que eles são pessoas que 'querem acreditar' - gosto do som do termo em inglês para isso: gullibility. Só que a credulidade dos religiosos é humana: eles acreditam prontamente em estórias que os agradam, que acariciam somente aquilo em que eles querem acreditam, e não em qualquer estória.

A briga dos religiosos com a evolução é essa: a evolução parece lembrá-los de que eles são - nós somos -, antes de tudo, animais, e os religiosos, especialmente os cristãos, não querem ser lembrados disso. Eles preferem acreditar que Deus os criou à sua imagem e semelhança, preferindo, provavelmente, a ilusão ao invés da realidade. Qualquer um ou coisa que lhes contradiga é um servo do demônio ou uma mentira criada pelo demônio.

Mas o mesmo ocorre também com os não-religiosos, pois também eles têm demônios. Todos temos preconceitos, e o que reforça nossos preconceitos e nossos gostos pessoais é facilmente abraçado por cada um de nós. Ilusões, adoramos viver de ilusões, já que a realidade geralmente não é do jeito que gostaríamos que ela fosse. Não é a toa que, em algumas vertentes do budismo, o que mais se parece com o diabo cristão é Maya, que pode ser descrito como a divindade das ilusões.

O que é real? Não sei, mas busco - e oro para que minha busca não seja em vão.



(imagem: Mãos em prece, de Albrecht Dürer)

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Nosso lar

Ontem, na festa de aniversário de um amigo chileno, conversávamos sobre as diferenças entrte o português e o espanhol, e entre as diferenças do português falado em diferentes partes do Brasil. Em Cuiabá, por exemplo, não há peixes: há pêches...

Dizem que a pátria verdadeira de cada homem é a língua que ele fala. Talvez o modo de pensar de cada ser humano esteja ligado mesmo à lingua que ele aprendeu quando criança. Acho que em um livro espírita popular, "Nosso Lar", de Chico Xavier, essa idéia é levada ao extremo: o lar do título é uma cidade (uma "colônia") espiritual para os recém-mortos falantes de português. Fica a pergunta para algum espírita me responder: e os hindus? Terão eles outro tipo de cidade? E os índios? E os chineses?

Não sei quanto tempo o português irá durar. As línguas mudam e o próprio português não é uma língua de primeira geração, pois é filho do latim, e ele já apresenta algumas subdivisões - o português de Portugal, o do Brasil e o português da África. Mas pode-se imaginar facilmente um dia em que o português desaparecerá, ou especular sobre futuros alternativos onde ele sobreviverá como um dialeto de uma cultura minoritária. Um exemplo disso aparece no livro "Orador dos mortos", de Orson Scott Card, onde, após a descoberta por uma sonda de um novo planeta, os colonizadores do novo mundo foram "portugueses pela língua, brasileiros pela cultura, e católicos pelo credo", dando a essa nova Terra o nome de Lusitânia. Para mim é claro que a escolha de língua, cultura e credo nesse romance foram feitas pelo exotismo: para o escritor, que foi um missionário mórmon no Brasil, nada deve ter parecido mais alienígena do que o jeito de ser dos brasileiros.

De qualquer modo, eu não me vejo como amarrado ao português. Minha pátria é o Brasil, mas também não é nenhum lugar - antes de ser brasileiro, falante de português, eu sou humano. E entendo que o conhecimento e a 'verdade' podem ser expressos em qualquer língua. Infelizmente, porém, não tenho - nunca terei - tempo para ser tão poliglota quanto eu gostaria. Assim, concentrei parte da minha vida na aprendizagem da mais universal das línguas: a matemática.

Os sonetos de Shakespeare são lindos, tanto quanto os sonetos de Camões, mas um dia as línguas inglesa e portuguesa - e, principalmente, os homens - poderão ter se perdido, ou mudado tanto, que apenas uns poucos estudiosos os entenderão. No entanto, as leis da natureza continuarão sendo as mesmas que eram na época de Shakespeare e Camões. E em que língua se lê o livro da natureza? A resposta a essa pergunta foi escrita por Galileu, no início do século XVII:

"A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de se entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto."

A natureza é beleza pura, e descrevê-la, criando poesia eterna, que sobreviverá a línguas e povos, usando a matemática, é o objetivo mais nobre que eu imagino que um artista pode almejar. Mais do que invejar Fernando Pessoa, por ter escrito "navegar é preciso, viver não é preciso", eu invejo Einstein por ter escrito, quase na mesma época,






É pena que tão pouca gente esteja disposta a entender o que se esconde atrás dessa equação, mas é assim que brilham as estrelas, que iluminam o universo, nosso verdadeiro lar...



(imagem: Plêiades, em foto da NASA)

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A origem das espécies

Estou lendo atualmente alguns livros de biologia. Charles Darwin é outro dos artistas que eu considero geniais, mais geniais que qualquer escritor ou poeta ou músico ou cineasta ou sei lá o quê. Eu invejo Darwin, não tanto por sua genialidade, mas principalmente por ele ter podido viajar num navio por anos a fio, observando o mundo. Passou até pelo Brasil, em 1832, onde se espantou com a natureza - "deleite é um termo fraco para expressar os sentimentos de um naturalista que anda pela primeira vez por uma foresta tropical brasileira" - e com a escravidão: "Graças a Deus, nunca mais voltarei a visitar um país escravista".

A idéia central da biologia moderna, aquela que lhe dá sentido, é a evolução. De acordo com essa idéia, descrita num livrinho simples e interessante, chamado "Evolução, o sentido da biologia", "o raciocínio evolutivo também permite compreendeer comportamentos". Um exemplo dado por esse texto é o das náuseas e vômitos sentidos por mulheres grávidas no primeiro trimestre da gravidez: seria uma defesa desenvolvida pela espécie humana para proteger o embrião de possíveis substâncias tóxicas ingeridas pela mãe.

Eu posso pensar em dúzias de outros comportamentos que 'herdamos' de nossa biologia. O problema é que a maioria das pessoas não pensa sobre isso, e age como se estivesse sendo motivada por razões... Deus sabe o quanto somos animais, e nossa razão é, em geral, usada apenas para satisfazer nossos instintos. Um exemplo: dentre os primatas, os seres humanos são aqueles em que os órgãos sexuais masculinos são os mais desproporcionais em relação ao tamanho do corpo. Em outras palvras, olhando um gorila e um homem, você seria levado a pensar que o pênis do gorila seria maior do que o do homem e, na verdade, é o contrário que acontece.

E daí? O que isso tem a ver com evolução e comportamentos humanos? Bem, como será que os humanos acabaram tendo essa característica? Talvez, por seleção feminina: as fêmeas humanas, no passado, selecionariam os machos que tinham os pênis maiores e essa característica seria passada para os seus filhos, e assim por diante, até chegarmos aos dias atuais. Qual razão elas teriam para fazerem isso? A mesma que faz as fêmeas dos pavões escolherem os machos com caudas mais vistosas: a cauda é um símbolo de saúde, força, talvez até mesmo de status social. Claro que, como a biologia é uma ciência, essa não é a única hipótese para explicar o tamanho dos pênis humanos, mas fico, por ora, com essa.

Hoje, de qualquer modo, qualquer que seja a explicação, as mulheres não escolhem mais os homens pelo tamanho do pênis. Dizem elas que escolhem por amor. Eu, tendo conhecido algumas mulheres, duvido. A escolha ainda é biológica, mesmo que encoberta por séculos de cultura. Mas o amor é cantado e decantado, aparecendo até na Bíblia. No entanto, toda essa supervalorização de um sentimento que pode ser nobre e real em alguns casos me parece apenas uma fuga, uma tentativa de esconder nossa origem animal, uma racionalização a posteriori do que é, na imensa maioria das vezes, fundamentalmente irracional.

Repito o que já disse antes, aqui, de outras formas: nós, humanos, podemos ser divinos, mas em geral somos apenas pó, podemos ser belos, mas em geral somos muito feios, e não gostamos que nos lembrem disso. Eu, que já busquei muito o amor, não procuro mais esse tipo de beleza: quero apenas a beleza pura e natural, que em princípio não depende diretamente de outros humanos para ser encontrada.

(imagem: detalhe do Nascimento de Vênus, de William-Adolphe Bouguereau)

sábado, 11 de agosto de 2007

O retrato de Dorian Gray

Após outra semana em que aprendi um pouco mais como os seres humanos se relacionam, não sei ao certo o que escrever. Os termos que vêm à minha mente surgiram numa conversa de ontem, sem serem ditos por mim, descrevendo os eventos da semana: "vilania", "má fé"...

O poder: humanos lutam pelo poder e seus benefícios. Animais sociais agem assim. Mas os humanos tentam se justificar, racionalizando atitudes que são simplesmente egoístas. Eu, à margem, apanho atitudes e discursos, e descubro, sem grandes esforços, nas entrelinhas, falsidade e hipocrisia. E é assim que somos imagem e semelhança de Deus? Não, nós não temos nada a ver com Deus: somos puro pó e sujeira.

Há muitos anos, na casa de meus pais, me vi, numa madrugada, observando um trio de gatinhos brincando na sala. Ali, senti uma graça e uma leveza que reencontrei muitas vezes depois, em pombos numa praça, num boto que vi no Araguaia, nos pardais vagabundos da rua de minha casa, numa árvore, num inseto, no céu estrelado, numa flor, numa idéia. Beleza em uma forma impossível de se registrar por completo, seja em filmes ou livros ou qualquer forma. Beleza apenas.

Eu tenho um filho de dois anos. E nele de novo me espanta reencontrar essa beleza nobre e simples que vi nos gatos naquela noite. Sua inocência me comove até quase as lágrimas. Sua pureza infantil, presente em cada cachinho de seus cabelos, me assombra. Onde eu e os outros nos perdemos, que já não somos mais assim? Como nós, homens e mulheres, nos tornamos criaturas tão feias e odiáveis?

Na casa de meus pais, hoje, não há gatos. Na parede da sala se destaca uma grande foto minha, tirada quando eu tinha três ou quatro anos de idade: eu, de cabelos longos e lisos, vestindo uma blusa que hoje quem usa é meu filho. Que Deus não permita que ele se desfigure tanto como eu, nem tanto quanto meus contemporâneos.

(imagem: Madonna, de Correggio)

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Recordações do escrivão Isaías Caminha

O Brasil é um país muito grande e por isso mesmo poucos o conhecem bem. Eu já viajei um pouco por aqui e, assim, não me é difícil compartilhar o que vi de interessante - aliás, essa é a pretensão principal desse blog sem maiores pretensões.

Bem, eu já estive em Brasília, onde tive o prazer de visitar, entre outras maravilhas, o prédio do Senado Federal. Além da beleza da obra em si, o que me chamou a atenção, logo na entrada, foi uma parede do museu do Senado, onde havia uma sequência de quadros mostrando os ilustres senadores que já presidiram a casa: me lembro das fotos de Jader Barbalho, Antônio Carlos Magalhães, Renan Calheiros...

Porém, não foi em Brasília que aprendi como funciona a política no Brasil, mas sim em uma cidadezinha do interior, que poucos conhecem, chamada Brasília Nova: estive lá a passeio, há não muito tempo, e por muita sorte pude visitar a Câmara de Vereadores da cidade enquanto ocorria uma sessão nela. A cidade, por ser bem pequena, tinha o número mínimo de vereadores previsto em lei (acho que eram sete ou nove, mas apenas seis estavam presentes).

Por ser um município bem pequeno, Nova Brasília vivia de verbas do governo federal. Na reunião que vi, o grande assunto do dia era a decisão a ser tomada sobre o que fazer com uma verba extra enviada para o município, que permitiria a contratação de mais alguns funcionários para a cidade. A decisão de que tipo de profissional contratar havia sido repassada pelo prefeito à Câmara, em nome da democracia e, assim, a decisão tinha que ser tomada pelos vereadores.

A sessão foi aberta pelo presidente da Câmara - um político antigo, perseguido pela ditadura, mas que, com a mudança dos ventos, agora estava no poder - com a apresentação, em seguida, por parte dos vereadores da situação, da proposta de contratação de um contador e um advogado. A única vereadora da oposição - a única mulher da casa - subiu o tom: "mas nós poderíamos contratar um professor ou um médico!"

O presidente da Câmara, do alto de sua experiência, argumentou exaltado que a verba que a cidade havia recebido era pouca, e que contratar um professor e/ou um médico não resolveria os problemas da cidade, que eram muitos. Oras, se eles pudessem contratar dez médicos e dez professores, isso sim, mas um? Aliás, um médico na cidade iria era trazer um novo problema, pois não haveria onde ele ficar: a cidade não tinha hospital ou posto de saúde! O mesmo vale para o professor: onde ele iria ser instalado? E um hospital ou uma escola não podem ser feitos de qualquer jeito, com improvisações. Se o governo federal quisesse mesmo resolver os problemas da cidade mandaria verbas para dez médicos, dez professores, uma escola e um hospital. Ele já estava cansado de ver o governo federal prometer resolver os problemas e não fazer nada direito! Ele mesmo, como presidente da Câmara, enviaria uma carta às autoridades competentes dizendo isso. Por ora, porém, com o dinheiro minguado do orçamento da cidade, o mais adequado seria contratar um contador e um advogado para ajudarem a administração a usar sabiamente os recursos, poucos, de que ela dispunha.

E foi assim, depois desse discurso - e de uma votação simbólica, já que a oposição era minoria - que os trabalhos foram encerrados, e a cidade ganhou um contador e um advogado. Só depois, é claro, foi que eu soube que os vereadores da situação eram eles, todos representantes de famílias poderosas e influentes na região, todos bacharéis, contadores e advogados, enquanto a moça da oposição era uma simples professora. Na verdade a sessão da Câmara fora apenas pro forma, pois as contratações haviam sido decididas antes, em jantares na casa do presidente.

Vendo isso me veio à memória uma passagem de um livro de Lima Barreto, "Recordações do escrivão Isaías Caminha", em que o personagem vai ver uma sessão do plenário da Câmara, no Rio de Janeiro, então capital. Fiquei com vontade de doar o livro à biblioteca da cidade, mas logo a vontade passou: lembrei que lá poucos devem se dar ao trabalho de ler.

(imagem: Brasília, a cidade real, na Wikipedia)

sábado, 4 de agosto de 2007

Sonho de uma noite de verão

Li hoje, no jornal que eu assino, um texto de um médico, o doutor Dráuzio Varella, sobre "o sono e os sonhos". Segundo ele, sonhar é uma qualidade desenvolvida por alguns seres vivos (os mais complexos) que 'sobreviveu' por conferir a quem sonha alguma vantagem evolutiva.

A necessidade de sonhar sempre me fascinou. Eu algumas vezes tive gatos que, nitidamente, sonhavam, gastando horas nisso. Eu, sonhando, percebi muitas vezes que o que eu sei do mundo, conscientemente, parece ser menos do que eu realmente sei, que se apresenta em sonhos.

Por exemplo, quando adolescente eu morava em uma república de estudantes, com uma liberdade sequer imaginada pela maioria dos adolescentes. Nessa época, em que eu descobria o mundo e meu lugar nele, me preocupava muito qual deveria ser minha postura ética em relação a tudo, mas especialmente com as mulheres.

Foi assim que, numa noite, tive um sonho em que eu era convidado por uma amiga para sair com ela. No sonho, íamos para um shopping, onde ela se transformava, na frente de um espelho, em uma boneca de borracha, dessas que se compra em sex-shops, só que com uma diferença: a boneca que era ela tinha quase que só órgãos sexuais, que queriam me devorar. Ela era apenas sexo. Assustado, eu fugia, para encontrar outras mulheres que viravam bonecas monstruosas - todas as mulheres viravan bonecas monstruosas, transformando meu sonho num filme de terror classe B. Mas, antes de eu acordar, encontrei uma moça que não virava uma boneca, e que, para meu espanto completo, era a única mulher pessoa de verdade - era uma colega de faculdade que, até onde eu sabia, era a única que fazia iniciação científica.

Psicanalistas podem analisar esse sonho de muitas formas mas, seja como for, foi um 'aviso' de meu subconsciente, sobre um tópico que me incomodava muito. Hoje, anos mais velho, vejo com pesar que a ciência, que eu amo, de uma forma geral não atrai mulheres, o que para mim é muito mais doloroso e assustador que um filme B de terror.

E eu sonho, hoje, acordado, em ser digno de encontrar no paraíso alguém como Émilie du Châtelet, quase esquecida por uma sociedade que impõe a beleza como qualidade máxima a ser buscada pelas meninas...

(imagem: Émilie du Châtelet, retratada por algum pintor anônimo, com livros e segurando um compasso)

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Sermão de quarta-feira de cinzas (outro)

Ontem passei boa parte do dia num cemitério. Minha avó, já bastante idosa, e que morava com meus pais, faleceu na noite anterior. No atestado de óbito constava, entre um punhado de causas, demência avançada, um mesmo diagnóstico que eu já tinha visto antes, no último exame médico que minha avó tinha feito, cerca de um mês atrás.

O que é um ser humano senão isso, uma criatura no quase insustentável limiar entre a divindade e o nada? Somos pó, pó organizado em um sistema complexo e por vezes belo, mas pó - e pó voltamos a ser, aos poucos, a cada dia, até o dia final em que algo se desfaz e deixamos de ser humanos, vivos e complexos.

No velório, senti um cansaço e um medo repentino que nunca havia sentido antes. Fechando os olhos, senti como se a morte - ou alguém ligado a ela - estivesse ali, no meio de um milhão de parentes que eu nem lembrava que tinha, ao lado do caixão em que jazia a casca do que antes era minha avó.

Na semana passada, num estande de uma livraria, durante um workshop, fui atraído por uma biografia de Marie Curie, onde, para meu espanto, encontrei uma foto de uma sessão espírita. Não pude comprar o livro, mas entendi que alguns cientistas do final do século XIX e do começo do século XX sentiram que poderia haver algo ali, no espiritismo, a ser investigado de forma científica. Se havia raios X e radioatividade sendo descobertos naquele momento, será que não haveria também todo um outro mundo oculto, ligado às vidas humanas, pronto para ser explorado?

Feliz ou infelizmente, o materialismo venceu, e esse tipo de questão não é posto mais, ao menos pelos cientistas. Para a ciência de hoje, moderna e burguesa, sem lugar para superstições, somos pó - de estrelas - organizado, e ponto final. Eu, como homem de ciência, com uma carreira a zelar, me calo a respeito. Mas, humano, sinto a fragilidade de ser pouco mais que uma casca que tudo ignora...

Fica, de novo aqui nesse blog, a frase que minha vó repetia sem parar, em sua talvez sábia senilidade feita de mil pensamentos desorganizados: "rogai por nós"!

(imagem: San Girolamo, obra de Caravaggio, do século XVII)

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Como vejo o mundo


Tenho viajado muito pelo mundo da internet. E quase sempre me deparo com sites reproduzindo imagens e frases apanhadas em outro lugar. Imagens, há muitas: infinitos sites e blogs apresentam principalmente fotos sensuais, eróticas ou simplesmente pornográficas. Sexo sempre dá audiência. Quanto às palavras, é muito fácil achar uma infinidade de poemas e textos 'bonitos', tirados de algum livro ou de outro site, ou então comentários sobre os acontecimentos mais recentes.

Eu não queria fazer nada disso. Minha praia é outra. Enquanto muitos sonham com - e correm para - as badaladas cidades do litoral, eu me satisfaria muito bem com outras esquecidas paragens, no interior do Brasil, ou em alguma cidade européia com museus: entre Copacabana e Ipanema, eu ficaria bem com o Paço Imperial e a Candelária, uma excursão aos sebos no centro velho do Rio de Janeiro, ou alguma exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil.

Morreram dois cineastas importantes esta semana, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. Pena: parece que o mundo fica mais pobre. Fica? Para mim, eles, os cineastas, não eram importantes, mas sim algumas de suas obras, que ficaram, e que podem servir como exemplos de beleza, como exemplos de criação e fonte de inspiração, não como souvenirs para serem exibidos por quem quer dizer "Eu vi isso" do mesmo jeito que turistas mostram fotos para dizer a outros "Eu estive lá".

Não, eu não quero apenas saborear o mundo: gastronomia não está entre os meus hobbies, nem cinefilia, nem turismo, e acho que isso me define como uma espécie de aberração, um ser não-burguês num mundo burguês por excelência. Eu nunca quis ser burguês. Eu nunca quis ser médico ou advogado, por não querer ser igual aos médicos e aos advogados, vestidos de forma impecável: achei isso escrito claramente num caderno meu de quarta série, escrito com minha letra infantil de dez anos...

O que eu queria, o que sempre quis, desde criança, simplesmente, era amar, conhecer e criar. E Deus sabe como isso é difícil... Mais fácil é se ligar a alguma tribo e caminhar em grupo, citando fontes comuns para dizer "sou como vocês, jogo o mesmo jogo". As citações são fundamentais: se você não é citado ou publicado, você não existe. Mas e aqueles que estão olhando para o outro lado, para o que ninguém quer ver, que ninguém quer saber que existe? Silêncio...

Meu modelo de ser humano e de artista, não é nenhum cineasta ou escritor ou poeta, e sim outro tipo de artista: Albert Einstein, que escreveu uma belíssima obra, tão pouco lida. Fazer o quê? Deixo aqui, para terminar, uma citação, curta, breve, dele, que pode servir para reflexão:

"O homem solitário pensa sozinho e cria novos valores para a comunidade. Inventa assim novas regras morais e modifica a vida social. A personalidade criadora deve pensar e julgar por si mesma, porque o progresso moral da sociedade depende exclusivamente de sua independência."
(imagem: retrato de Albert Einstein, pintado por Harm Kamerlingh Onnes)