terça-feira, 28 de agosto de 2007

Memórias póstumas de Brás Cubas

Depois de uma seqüência de dias quentes e secos, vi hoje a notícia de que nesse mês de agosto choveu apenas 2% da média de chuva medida no mesmo mês em outros anos. E isso me fez lembrar de quando morri. Era setembro ou começo de outubro, o ano era de copa do mundo, e não chovia forte há dois meses. O clima estava seco, tenso, as pessoas cheias de problemas respiratórios, as represas ameçando parar de fornecer água para as torneiras.

Me lembro bem do clima da época, pois foi quando eu e ela - quem era ela não importa - tivemos uma discussão forte, imensa talvez por ser a primeira. Ela saiu intempestivamente do apartamento para a rua, e imediatamente começou a chover, uma tempestade surpreendentemente intensa, como há muito os paulistanos esperavam.

Foi também a nossa última discussão. Não consegui dormir naquela noite. Fiquei na cama semi-acordado, com a nítida impressão de que havia uma equipe de cirurgiões ao meu redor, arrancando cuidadosamente meu coração. Logo soube, porém, que eles haviam falhado: eu morri naquela noite, e meu corpo - sem cicatrizes - é testemunha disso. Nada demais, entretanto: morri outras vezes depois, é claro, e hoje só espero não morrer mais por ter descoberto que para morrer é preciso estar vivo.

Tempora mutantur, seja lá o que isso for, nos et mutamur in illis.

(imagem: Viajantes surpreendidos pela chuva, de Hiroshige, artista japonês do século XIX)

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