Ontem passei boa parte do dia num cemitério. Minha avó, já bastante idosa, e que morava com meus pais, faleceu na noite anterior. No atestado de óbito constava, entre um punhado de causas, demência avançada, um mesmo diagnóstico que eu já tinha visto antes, no último exame médico que minha avó tinha feito, cerca de um mês atrás.
O que é um ser humano senão isso, uma criatura no quase insustentável limiar entre a divindade e o nada? Somos pó, pó organizado em um sistema complexo e por vezes belo, mas pó - e pó voltamos a ser, aos poucos, a cada dia, até o dia final em que algo se desfaz e deixamos de ser humanos, vivos e complexos.
No velório, senti um cansaço e um medo repentino que nunca havia sentido antes. Fechando os olhos, senti como se a morte - ou alguém ligado a ela - estivesse ali, no meio de um milhão de parentes que eu nem lembrava que tinha, ao lado do caixão em que jazia a casca do que antes era minha avó.
Na semana passada, num estande de uma livraria, durante um workshop, fui atraído por uma biografia de Marie Curie, onde, para meu espanto, encontrei uma foto de uma sessão espírita. Não pude comprar o livro, mas entendi que alguns cientistas do final do século XIX e do começo do século XX sentiram que poderia haver algo ali, no espiritismo, a ser investigado de forma científica. Se havia raios X e radioatividade sendo descobertos naquele momento, será que não haveria também todo um outro mundo oculto, ligado às vidas humanas, pronto para ser explorado?
Feliz ou infelizmente, o materialismo venceu, e esse tipo de questão não é posto mais, ao menos pelos cientistas. Para a ciência de hoje, moderna e burguesa, sem lugar para superstições, somos pó - de estrelas - organizado, e ponto final. Eu, como homem de ciência, com uma carreira a zelar, me calo a respeito. Mas, humano, sinto a fragilidade de ser pouco mais que uma casca que tudo ignora...
Fica, de novo aqui nesse blog, a frase que minha vó repetia sem parar, em sua talvez sábia senilidade feita de mil pensamentos desorganizados: "rogai por nós"!
(imagem: San Girolamo, obra de Caravaggio, do século XVII)
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Um comentário:
Caro Dedalus.
A morte (e em consequência) o tempo foram denegados, jogados pra debaixo do tapete, no mundo administrado em que ainda mambembente "sobrevivemos" (enquanto andarilhos quaisquer). E esta "modernidade", longe de ter expulso os espectros - a magia - enfeitiça através de dispositivos (fetiches) muito mais efetivos (Weber não tinha razão quando tratava do coceito de "desencanto moderno"). Tudo pra dizer que nos é vedada a experiência da morte e aquilo que se apresenta como defesa (normalização) desta experiência (a ciência, a técnica, o poder) desta incontornável condição (mortal) não passa de fantasmagoria. Pêsames não significam nada... nem obturação do vazio. Só tenho a lhe expressar meu silêncio (simbólico) pela morte de sua avó. Um abraço.
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