segunda-feira, 12 de abril de 2010

Dom Quixote


Enquanto escrevo isso, o relógio do computador me mostra que são duas da manhã. Eu deveria estar dormindo, mas acordei incomodado pela promessa que fiz a uma leitora anônima (que pode, muito bem, ser um leitor: nunca se sabe quem está por trás de um nome na internet) de contar uma história de amor.

Pois bem, a história aconteceu com um amigo meu, não comigo. Na verdade, foi com um amigo de um amigo, mas isso não vem ao caso. Esse rapaz, que vou chamar de René, era solitário e triste, pois, embora fosse romântico, era feio, pequeno e magro, ou seja, nenhuma moça o levava a sério. Isso até o deixava com uma péssima opinião sobre o sexo frágil, tal como aparece numa música dos anos 60, dos Doors: "women seem wicked when you're unwanted [as mulheres parecem más quando você não é desejado]".

Até que um dia, andando no fabuloso mundo cultural da região da Avenida Paulista, René conheceu Dulciana, que morava por lá. Dulciana não era bela como a Dulcinéia de Dom Quixote de La Mancha, mas pareceu gostar de René. E ela era muito sofisticada, diferente de qualquer mulher que René, morador de periferia, tivesse conhecido até então. Conversas e passeios acabaram por levar René ao apartamento de Dulciana, onde ele, já enternecidamente apaixonado, foi morar.

Contudo, embora morasse com Dulciana, René nunca era apresentado aos amigos dela como nada além de um amigo com quem ela dividia o apartamento (acho que o termo, em inglês, é "roommate"). Em público, ela proibia qualquer demonstração de intimidade entre eles. E isso magoava René demais. Foi assim que ele decidiu passar tudo a limpo, lendo, às escondidas, o diário dela. Foi seu primeiro grande erro.

O que ele leu no diário deixou-o morto. Ou pelo menos foi isso que ele pensou. E aí ele cometeu seu segundo grande erro, que foi contar a ela que havia lido o diário. Veio uma briga, e ela, para demonstrar toda sua indignação, dormiu, na mesma noite, na sala do apartamento, com um amigo comum dos dois (para quem René era apenas um amigo de Dulciana).

Aí René morreu mesmo. Ele não dormiu naquela noite, sentindo seu coração ser arrancado do peito sem anestesia. Assim que a manhã nasceu, ele pegou suas coisas, enfiou o rabo entre as pernas e voltou para a periferia de onde tinha saído, para nunca mais voltar a andar na região da Paulista (o que não deu certo, já que ele foi trabalhar lá, e via Dulciana com frequência).

René não morreu de verdade, mas, como numa música dos Beatles, "he fell back in his room / Only to find Gideon's bible / Gideon checked out and he left it no doubt / To help with good Rocky's revival" (ah! essa eu não traduzo não!). Isto é, René achou sua ressurreição numa mistura que envolvia religião: ele nunca mais se apaixonou, mas virou evangélico e, na igreja de periferia em que se batizou, conheceu uma moça com quem casou e teve filhos e todo esse blá-blá-blá. Dulciana, até onde sei, dizem que "virou" lésbica, mas isso deve ser intriga da oposição.

Minha cara leitora anônima (ou leitor disfarçado), não sei se essa é uma história de amor que vá lhe agradar, mas me lembrei dela outro dia mesmo, andando pela Paulista. A moral que essa história (ou eu deveria escrever estória?) tem é que a vida é perigosa, e se apaixonar é correr um risco grande, enorme mesmo: você deixa de ser dono de seu coração e o põe na mão de outra pessoa que pode simplesmente achá-lo um lixo, ou um brinquedo. Mas viver é aprender a investir o que você tem  (me desculpe pela analogia, é que o banco me mandou um caderninho hoje mesmo, mostrando quando renderam as ações e a poupança e os fundos, etc.): o investimento de retorno seguro rende pouco, enquanto que o que pode render muito é bastante arriscado.

Dito isso, acho que posso voltar a dormir. Minha consciência me cobra que eu escreva algo mais animador, mas não sei se posso. O que eu posso dizer além do que já está aí é: viva! Eu, pessoalmente, quero viver, e me lembro muito bem que escrevi, quando me interessava por filosofia (eu tinha muito tempo livre...), que viver é amar. Ame e se deixe amar, mesmo correndo todos os riscos do mundo. Eu, mesmo conhecendo a história do René, acho que ele não faria muito diferente do que fez se soubesse mais (provavelmente, ele não contaria que leu o diário...): ele, como todo mundo, queria ser amado.

Sonhe com os anjos, que eu vou tentar o mesmo...

(imagem: Dulcinéia, é claro)

2 comentários:

Anônimo disse...

Confesso que foi um grande conforto
ler teu(s) belo(s) texto(s)
as quatro e meia da madrugada. Merci.

...“Mas eu nasci um hipopótamo”

"Imagine um hipopótamo
Tartamudo e espantado
Amarrado na rua do Ouvidor
Triste como um filho póstumo
Escutando estarrecido
O enorme ruído das gargalhadas
do mundo em redor

Esta criatura trágica
Este corpanzil corcundo
Abrindo uma guela áfrica
Botando a boca no mundo

Pois é assim que eu sou
Pois é assim que eu sinto que sou
Quando subo num palco pra cantar
Padecendo o mais péssimo dos medos
E nem mesmo consigo dedilhar
Com o tremor que me dá em cada dedo
Tanta gente escutando a minha voz
Tantas caras e pares de ouvidos
Mas a guela escorrega nos bemóis
Ou então nem alcança os sustenidos

Eu sei que tem gente que é muito mais valente
E acha essa história de cantar
Um negócio extremamente ótimo
Eu acho também:
Mas eu me sinto um hipopótamo

Imagine, novamente, um hipopótamo
Caminhando equilibrado
Num fio de arame farpado
Longuissimamente esticado
Por sobre as enormes cachoeiras
de lá da foz do Iguaçu
Inquieto como átomo
Sob o foco das câmaras de TV
Sem olhar pra baixo pra não ver
A cascata rugino pra valer
E a risada feroz de Belzebu...

Pois é assim que eu sou
Pois é assim que sinto que sou
Quando fico de olho numa mulher
E ela fica também de olho em mim
E eu sei muito bem o que ela quer
Porém fico enrolado mesmo assim
Tropeçando nas minhas próprias pernas
Sem saber o que faça, como e quando
Infeliz como um homem das cavernas
Oscarito imitando Marlon Brando

Eu sei que tem gente que é muito mais valente
E acha essa história de trepar um negócio extremamente ótimo
Eu acho também!
Mas eu me sinto um hipopótamo

Imagine, finalmente, o hipopótamo
Num pantanal movediço
Afundando pesadíssimo
Sentindo a boca do abismo
Sorver suas bobas toneladas
Ofegante como um búfalo
Berrando, pedindo ajuda
No ouvido da selva surda
Sem ter ninguém que lhe acuda
Mesmo porque já passa das
quatro e meia da madrugada

Pois é assim que eu sou
Pois é assim que eu sinto que sou
Quando às vezes me olho num espelho
E percebo que desde que eu nasci
Que eu só faço viver e ficar velho
Sem saber o que vim fazer aqui
Com a corda do tempo no pescoço
E os pés a pisar num alçapão
Mil perguntas doendo em cada osso
Mil cantigas pedindo explicação

Eu sei que tem gente que é muito mais valente
E acha essa história de viver
Um negócio extremamente ótimo
Eu acho também
Mas eu nasci um hipopótamo"

Bráulio Tavares (Uma balada comportamental)

Dedalus disse...

Caro Anônimo,

Incrível o tipo de peça que o destino nos prega... Parece absurdamente inverossímil, mas ontem, sem sono, fui ler para me cansar, e peguei um livro de ficção científica que comprei no fim de semana. Li um conto: "Mestre-de-armas"... de Bráulio Tavares! Tem certeza que você não estava me espionando? Vou procurar as câmeras em minha casa!

Um abraço!