sexta-feira, 2 de abril de 2010

Paraíso


Eu, certa época, fui trabalhar no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (o IAG), quando ele ficava fora da Cidade Universitária, mais especificamente em frente ao Jardim Zoológico. A área lá, dentro do Parque do Estado, era muito bonita e verde, mas o prédio da biblioteca continha uma atração à parte: um lindo vitral com a musa da astronomia, Urânia.

Sentimental e inclinado às letras que sou, já tive minhas musas, mas nenhuma delas me marcou como Beatriz marcou Dante - é ela que vai recepcioná-lo na entrada do paraíso:
"Com o olhar fixo, Beatriz encarava o Sol sem piscar, como águia alguma jamais teria feito. Como um raio, seu olhar se infundiu em minha mente que se deixou inundar com o reflexo da sua luz e fez com que eu também fitasse o Sol por mais tempo que eu seria capaz. (...) E então senti uma coisa que eu seria incapaz de descrever. Algo similar, talvez, à transformação sofrida por Glauco, ao provar a erva que o transformou em um deus. “Transumanizar,” é a melhor palavra que posso oferecer, para algo que não se pode explicar com palavras."
Hoje eu trabalho numa sala que fica em frente a uma impressora que atende a todo um andar do prédio. Como na minha porta há uma parte de vidro, eu vejo, até mesmo sem querer, quem vai à impressora. E, é claro, nessa procissão de gentes, vejo rostos e olhos de todos os tipos. Ontem, por exemplo, já no fim do dia, uma colega que ia à impressora parou em minha sala, e conversamos sobre problemas com os olhos dela - ela teve de parar de usar lentes por um tempo e pensa em fazer uma cirurgia corretiva.

Contudo, eu sei que há, sim, olhos "perfeitos" e iluminados, que sorriem e que tem vida própria e, que mesmo estando o resto do corpo dentro de uma burca, ainda fariam suspirar. Sei que existem, pois já os vi, e queria eu ter sido Dante para imortalizá-los de acordo, como ele fez com a sua musa. Pena, porém, que algo sempre me faltou, e ainda me falta: não creio que algum dia eu seja digno de andar, nem mesmo na imaginação, debaixo do Sol do paraíso...

(imagem: Dante e Beatriz à margem do rio Arno, em imagem do pintor pré-rafaelita Henry Holiday.)

2 comentários:

Ishikawa disse...

Acho fantástico ver como alguns autores conseguem retratar momentos que passamos. Pra alguns autores foi um período todo, movimentos reacionários que se limitam a alguma fase de nossa vida. Sou fascinada pelas gravuras da Divina Comédia. Comprei esse livro num sebo também.

Dedalus disse...

Cara Ishikawa,

Acho que não entendi o que você quis dizer com "movimentos reacionários"... De qualquer forma, é mesmo bem legal quando encontramos em algum autor algo que já vivemos: é uma confirmação de que somos humanos. Mas também é bem legal quando encontramos algumas coisas em que nós nunca pensamos: é uma confirmação de que a imaginação pode ir mais longe do que imaginamos...

Um abraço!