quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dublinenses


Talvez eu já tenha contado essa história aqui, talvez não. Não custa repetir, e se houver inconsistências, bem, que se dane: eu estou ficando velho, e minha memória varia.

Eu acho que tinha uns nove ou dez anos, e voltava da padaria por uma viela de terra, carregando um saquinho de leite B e um pacote de pães. No chão, ao meu redor, nos pés dos muros, uma planta espinhosa com pequenas flores - acho que se chama "coroa de Cristo" ou algo parecido.

E, de repente, "bateu". Como uma onda, avassaladora, gigantesca, levando tudo embora. O mundo desapareceu, e fiquei eu, com uma visão. Foi como se num segundo eu tivesse entendido tudo, tudo mesmo, e não conseguisse acompanhar.

O que se apresentou diante de mim era o universo ou talvez a existência ou Deus - palavras que nem de longe descrevem o que eu vi, mas que são o melhor que eu tenho. E a sua essência era conhecimento. Conhecimento: o universo ou a existência ou Deus estavam encharcados de conhecimento, eram conhecimento, pronto para ser lido, compartilhado, reconstruído.

Eu tentei viver isso minha vida toda: viver é conhecer, é amar o conhecimento e os seres humanos. Estudei tudo que pude - línguas, ciências exatas, biologia - e tentei aproveitar o que aprendi para transformar minha existência e a dos outros ao meu alcance. No final, me tornei um professor universitário.

Pois bem, pulo agora uns trinta anos, até anteontem. Estou ainda sentindo o golpe de uma experiência sensorial no planetário, que me fez ver o quão pequeno eu sou. E aí uma colega, preparando aula, me apresenta Paulo Freire, explicado por Moacir Gadotti: "educar é encharcar de sentidos cada momento do cotidiano". Ouvir isso, para mim, foi como tomar um chute "naquele lugar", como se alguém tivesse colocado um cigarro acesso numa ferida minha.

Eu ainda não acredito: se isso já foi escrito, as pessoas todas deviam saber, isso deveria estar escrito em cada muro, em cada página, em cada palavra. E eu, ligado a instituições universitárias por mais de vinte anos, nunca tinha ouvido algo similar, dito por quem quer que seja. Onde eu estava?

Pois então, agora, aqui estou eu, abobalhado, perdido com essas "revelações" todas, uma atrás da outra. O timing tem sido perfeito: é como se eu estivesse passando por um processo de lavagem cerebral, como o que é feito por algumas seitas, com cada passo planejado com cuidado, para a minha desconstrução. Não, não creio em teorias da conspiração, mas acho que nesse caso o universo está conspirando, e eu não sei se é a meu favor ou contra mim.

Eu preciso ler mais o mundo, descobrir mais, escrever mais. Eu preciso me ler, me descobrir, me escrever: quem sabe algo se aproveita. Eu, agora, hoje, sinto que já não sei mais nada: acho que tiraram o chão de debaixo de meus pés, e eu estou caindo, caindo e caindo, quando preferia voar.

(imagem: James Joyce, um escritor interessado em epifanias, palavra sobre a qual diz a wikipedia: "The word's secular usage may owe some of its popularity to James Joyce, who expounded on its meaning in the fragment Stephen Hero and the novel A Portrait of the Artist as a Young Man (1916) (...) Joyce also used epiphany as a literary device within each short story of his collection Dubliners (1914).  [O uso secular da palavra [epifania] pode dever algo de sua popularidade a James Joyce, que escreveu sobre seu significado no fragmento Stephen Herói e no romance Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916) (...) Joyce também usou a epifania como uma ferramenta literária em cada conto de sua coletânea Dublinenses (1914)]" - deu para sacar de onde saiu o nome desta postagem e o meu nome?)

3 comentários:

Anônimo disse...

Galera, deixo aqui o meu recadinho para os apaixonados em Divulgação Científica:

Nos próximos três meses, o Museu Exploratório de Ciências (MC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desafia estudantes, curiosos e aficionados por ciência de todo o país a planejar, construir e operar um equipamento capaz de extrair petróleo das camadas do pré-sal. As inscrições acontecem, de 9 de março a 13 de junho, no endereço www.mc.unicamp.br.
Diversas possibilidades para resolver o desafio. As equipes podem e devem criar o que desejar, desde que observadas as condições especificadas no manual do 4º GD. As edições anteriores mostraram que é possível encontrar todo tipo de equipamento. Do mais simples e criativo, ao mais robusto e engenhoso.

Abraços
Camila

Alessandra disse...

caro, ler este seu texto, me fez sorrir, por ter lembrado de vários momentos em que tive esses "encontros" com o (auto)conhecimento além dos livros. A sua passagem da infância me fez também lembrar de um livro inesquecível: "Marcovaldo e as estações na cidade" de Italo Calvino. Vale a pena.

Dedalus disse...

Cara Alessandra,

Que bom você me deixar saber que fiz você sorrir: não é sempre que eu atinjo alguém. Obrigado pela dica sobre Calvino - é um dos meus autores prediletos, mas esse livro eu não conheço ainda.

Um abraço!