Acordei, hoje, sonhando que estava de volta ao ensino médio, em uma esola pública. Meio que aturdido pelo sonho, fiquei na cama, antes de levantar, pensando na escola pública e nos alunos que saem dela hoje. E me lembrei de minha infância, passada em escolas públicas.
Lembrei de que tive bons professores - uma de minhas professoras de geografia, por exemplo, era esposa de um escritor famoso, J.C. Marinho Silva,
autor de "O gênio do crime", e nos contava de suas viagens à Europa. Outra, professora de química, era esposa de um gerente de banco - na época cargo de muito respeito - e era o exemplo mais vívido que eu tinha de uma "dama". Minha professora de 4a. série nos ensinava canções em francês - não me esqueço do "Frère Jacques, dormez-vous? Sonnez les matines..." E assim vai. Hoje, acho que não há nada parecido nas escolas públicas: a classe média não está mais lá.
Em meu tempo de estudante, o sonho não era estudar num colégio particular, mas no principal colégio público, no centro da cidade (em Guarulhos, o
Conselheiro Crispiniano, em Santo André, o
Américo Brasiliense, em Mauá, o "Viscondão", todos colégios com vestibulinhos disputados), ou em um colégio técnico, também público, como as ETEs e escolas técnicas federais. Hoje, quem pode paga para separar seus filhos da pobreza (eu, inclusive). As escolas públicas ficaram para os pobres, um reduto de quem não tem recursos e status.
Em meu tempo de estudante, eu ia com meu pai ao centro da cidade de São Paulo, para me maravilhar com as vitrines do Mappin: lá vi, pela primeira vez, quando tinha uns dez anos, uma raquete de tênis - e me deslumbrei! O centro velho de São Paulo tinha muitas coisas boas além do Mappin: a Mesbla, da 24 de maio, as Grandes Galerias, a Ultralar, onde comprei, adolescente, meu
Sgt . Pepper's, em LP, a Baratos Afins. Hoje, só há camelôs e as Casas Bahia, e a classe média vai aos "shoppings". O centro velho foi abandonado e virou uma sombra do que já foi.
Em meu tempo de estudante os cursos de licenciatura eram feitos junto com o bacharelado. No
IFUSP, onde me graduei, eu tive a opção de cursar as disciplinas da educação junto com as do bacharelado em física. Minha turma foi a última: daí em diante houve uma completa separação dos currículos, e já no vestibular os alunos deviam optar entre licenciatura ou bacharelado, sem intersecção. No final da graduação, fui monitor de uma dessass turmas de licenciatura: só alunos vindos de escolas públicas, de bairros de periferia, com sérias falhas na formação. A classe média não estava lá.
Em meu tempo de estudante, não havia TV paga - a TV era a mesma para todos, ricos ou pobres. Havia programas como
Cosmos e
Jacques Cousteau para todos. Havia o Chacrinha, é claro, mas não havia o culto da celebridade vazia, como acontece nos tempos atuais, com o Big Brother. Uma celebridade que nunca esqueci , da TV, foi o
Mequinho: eu pedi e ganhei no Natal um jogo de xadrez com a marca dele, fabricado pela Gulliver. Onde estão os Mequinhos de hoje? (O Estadão publicava uma coluna de xadrez.) Hoje, a TV aberta é refúgio da pobreza, voltada para ela: a classe média não está lá.
É como se nossa sociedade tivesse se separado. Os ricos - às vezes nem tanto - criaram seus refúgios feudais: condomínios fechados, escolas particulares, coisas como a Daslu, canais de TV particulares, fechados. E os pobres, de fora dessses castelos, ficaram por conta própria, recebendo esmolas e migalhas. Uma visão sombria, provavelmente simplista, mas acho que com um fundo de verdade. Me levantei entristecido.
No café da manhã, ao pegar o jornal, vi que a manchete principal era "
Desigualdade educacional no Brasil é ainda maior que a de renda". Juro que eu não sabia.
(imagem: "A queda de Lúcifer", ilustração de Gustave Doré para o livro O Paraíso Perdido de John Milton; a frase famosa desse livro é "Better to reign in Hell, than serve in Heaven" (melhor reinar no inferno, do que servir no paraíso) - vi isso quando era criança, na TV aberta.)